Carnaval. Polícia. Porrada

Ações violentas da PM durante a folia resultaram em tiros de bala de borracha e bombas, agressões, prisões arbitrárias e encerramento de blocos antes do previsto. No Barreiro, duas pessoas foram presas e ao menos 21 ficaram feridas


por Lucas Simões
Publicado em 15 de Fevereiro de 2018 às 15:37 e atualizado às 17:00

 

Bloco I Wanna Love You – Foto: Tamás Bodolay

A beleza do Carnaval de Belo Horizonte foi estragada pela Polícia Militar em algumas festas, principalmente nos bairros de periferia. Assim como no ano passado, a PM voltou a agir com truculência o que resultou em interrupção de blocos, prisões arbitrárias e muitas agressões. As ocorrências mais graves aconteceram na segunda-feira (12/01), durante o desfile do bloco Filhos de Tcha Tcha, no Barreiro, e no Palco da rua Guaicurus, região historicamente estigmatizada e marginalizada da capital, na festa oficial da Belotur.

Na região conhecida como Vale das Ocupações do Barreiro, que engloba as ocupações Eliana Silva, Irmã Dorothy, Camilo Torres e Paulo Freire, o bloco Filhos de Tcha Tcha havia feito mais de dez horas de festa sem confusão. Às 21h20, porém, os foliões foram surpreendidos por uma ação de dispersão forçada dos policias militares, com tiros de balas de borracha, pancadas de cassetetes, jatos de spray de pimenta e bombas de efeito moral lançadas contra os foliões. Dezenas de pessoas ficaram feridas.

De acordo com Leonardo Péricles, um dos coordenadores do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), os policiais militares pediram para que o som da festa fosse cortado às 21h. Segundo ele, os moradores questionaram a ordem e tentaram dialogar, mas foram agredidos.

“A PM mandou desligar o som. Era 21h do domingo de Carnaval e o som nem alto estava. Alegaram que moradores reclamaram, mas a região ali das ocupações não tem vizinhos, só empresas que estavam fechadas. Não existia vizinhança para reclamar. O problema é que fizemos 10 horas de festa sem precisar da PM, sem confusão, com tudo lindo, com todo mundo feliz. Aí, eu li na imprensa que o comandante do 41º Batalhão disse que a Indianara, coordenadora do MLB, foi conversar com ele com um martelo na mão. Eu tenho mais de 200 testemunhas que podem provar que ninguém ali estava com martelo ou agiu com violência contra a PM. Eles inventaram um motivo para terminar com um Carnaval que não precisou da ação da PM em nenhum momento”, afirma Leonardo.

Bloco Filhos de Tcha Tcha – Foto: Eveline Trevisan

Com base na acusação de portar um martelo e ter desacatado os militares, a moradora da ocupação Eliana Silva, Indianara Mendes, funcionária do gabinete das vereadoras Áurea Carolina e Cida Falabela, ambas do PSOL, foi detida pela PM. Ela foi presa junto com outro morador, Salviano Nascimento, atingido com um tiro de bala de borracha e acusado de depredar uma viatura policial. Ambos foram levados para a Delegacia Central de Flagrantes (Ceflan I), de onde só foram liberados às 5h30 de terça-feira (13/01). Ainda segundo Leonardo Péricles, Indianara foi humilhada e agredida pelos policiais na delegacia. “Chutaram a costela dela, cuspiram nela e disseram barbaridades que eu nem tenho como repetir. Ela está cheia de dores, fez exame corpo de delito, mas ainda vai ao médico”, completou Leonardo.

O MLB vai entregar nesta quinta-feira (15/02) uma denúncia formal no Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), pedindo o afastamento do tenente coronel Silvio Mendes, responsável pela operação, bem como a identificação dos policias responsáveis pelas agressões à Indianara Mendes a pelo menos 21 outros moradores das ocupações do Barreiro que ficaram feridos. Além disso, o MLB solicitou a instauração de audiência pública na Assembleia Legislativa, cobrando apuração dos fatos.

“Nós sabemos que a PM tem uma perseguição histórica às ocupações e Indianara é perseguida por policiais militares do 41º batalhão desde o primeiro semestre de 2017. Nós vamos denunciá-los ao MP”, completou.

Em resposta, o tenente coronel Silvio Mendes, comandante do 41º Batalhão, negou qualquer abuso por parte dos policias militares. Segundo ele, alguns moradores solicitaram por três vezes a continuidade do bloco Filhos de Tcha Tcha, mas a PM não permitiu que o cortejo se estendesse. “O bloco começou no horário previsto, em torno de 12h, mas ficou mais de uma hora depois do horário previsto de término, que era às 20h. A terceira vez que vieram conversar com a PM, e foi a Indianara, que acabou presa… Bom, ela estava muito alterada, proferindo impropérios contra os policiais e acabou tomando voz de prisão por desacato. A partir do momento que a Indianara foi presa, os moradores investiram contra os policiais. Eles vieram na direção dos policiais com pedras”, disse o tenente coronel Silvio Mendes.

Ainda segundo o coronel, dois policiais militares, dos oito que participaram da operação, acabaram feridos, além de a PM ter uma viatura e uma motocicleta danificadas. Ele sustentou ainda a versão de que Indianara Mendes portava um martelo. “Um dos policiais ficou machucado no joelho, porque caiu o martelo no joelho dele. E outro tomou uma pedrada no peito e acabou caindo da moto. Estragou a motocicleta”, completou o tenente coronel Silvio Mendes.

Bloco Filhos de Tcha Tcha – Foto: Eveline Trevisan

Baixo Centro

Na rua Guaicurus, esquina com rua São Paulo, no baixo centro, o enredo de dispersão e fim de festa se repetiu diante de cinco mil pessoas que se concentravam na região. Ironicamente, o Palco oficial montado pela Belotur acabou sem Carnaval. Apenas 15 minutos após o artista Marcelo Veronez começar seu show, por volta de 1h20, a PM iniciou uma ação para dispersar o público e desligou o som, sem nenhum comunicado prévio ao público.

Segundo Pedro Valentim, da Família de Rua (FDR), que iria se apresentar às 3h, a produção do evento informou que a PM e a Belotur decidiram encerrar a festa antes das 4h, horário de término dos shows determinado pela própria Prefeitura, devido ao excesso de pessoas. “Eu cheguei na Guaicurus por volta de meia-noite e estava tudo tranquilo. O lance é que tinham acabado as atividades na Praça da Estação e muita gente estava migrando para a Guaicurus, mas tudo num clima confortável. Não teve uma confusão, nenhuma violência, nada. Mas, o que observei é que a polícia encasquetou que o espaço não ia dar conta de receber as pessoas e decidiu acabar com a festa”, disse Valentim.

Apesar disso, o major Flávio Santiago, chefe de comunicação da PMMG, negou qualquer dispersão por parte da polícia na rua Guaicurus, na segunda-feira (12/01). “Nós tivemos quase 1.000 eventos e em apenas um, no Barreiro, houve necessidade de força e dispersão. Não há ocorrência na rua Guaicurus”, frisou o major Santiago. Contradizendo o major Flávio Santiago, o tenente coronel Silvio Mendes confirmou que “houve uma coleção de cinco ou seis eventos com uso de força durante o Carnaval”.

Bloco Pisa na Fulô – Foto: Sérgio Diniz

Outros relatos

Nas redes sociais, diversos relatos de truculência policial apareceram entre os foliões. Durante a Mikatreta, festa organizada no sábado (10/02) pelos coletivos 1010 e Masterplano, na rua dos Tupis, uma mulher foi presa por usar um boné com uma folha de maconha estampada. Além disso, segundo relato de um integrante da festa que teve a identidade preservada, a PM exigiu que a festa acabasse mais cedo, por volta de 21h.

“Tive que ouvir que ‘se as pessoas não desocuparem logo, vamos ter alguns enfrentamentos'”, disse um participante da Mikatreta. “Ao conversar com o tenente, ele meio que exigiu para falar no microfone que ‘aquela não era uma ação da PM, e sim uma rotina de bairro, porque isso poderia queimar a imagem deles com aquelas pessoas que estavam ali’”, completou.

Carta de repúdio

Nesta quarta-feira, um grupo de 61 blocos publicou uma “Carta aberta à PMMG contra a repressão ao Carnaval de BH” (https://goo.gl/vkV3hG). No documento, eles denunciaram, além dos casos no Barreiro e na Guaicurus, força ostensiva para dispersar o bloco Garotas Solteiras, no centro; uso de spray de pimenta para intimidar os foliões que descansavam na grama da Praça Raul Soares, após o cortejo do bloco Unidos do Barro Preto, e uma abordagem abusiva contra um jovem presente no bloco I Wanna Love You, no Sagrada Família.

Além disso, o Bloco Tamborins Tantãs denunciou truculência contra ambulantes, que teriam sido coagidos a parar de vender bebidas para dispersar os foliões e ameaçados por policiais de terem as mercadorias confiscadas. No Bloco Uai SoudSystem, no bairro Nazaré, na região Nordeste da capital, o integrante Bruno Uaiss fez um relato denunciando a intimidação e preconceito da PM contra reggae (veja o vídeo com a abordagem policial neste link: (https://goo.gl/CcjQBH).

Na carta endereçada ao comandante-geral da PMMG, Helbert Figueiró, ao Secretário de Estado de Segurança Pública, Sérgio Barboza Menezes, e ao governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, os blocos lembraram episódios de violência anteriores, como quando a PM impediu o desfile do bloco Arrasta Favela, no Morro das Pedras, mesmo com autorização da Belotur, no Carnaval do ano passado. A ação da PM acabou com a prisão arbitrária da ativista Vanessa Beco (https://goo.gl/S696KW).

Na folia de 2016, centenas de pessoas foram impedidas de acessar a estação de metrô Primeiro de Maio, na região Norte, onde o Bloco Tchanzinho Zona Norte desfilou (https://goo.gl/t5q2hY). A PM usou spray de pimenta e bombas de gás lacrimogênio para vetar o acesso dos foliões ao metrô no meio da tarde, horas antes do fechamento da estação, às 23h, o que deixou dezenas de feridos. No mesmo ano, cerca de 700 ciclistas do Bloco da Bicicletinha foram agredidos com balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio (https://goo.gl/FKXre6), durante cortejo que passou pelo bairro de Lourdes, na zona Sul. À época, a corregedoria da PM abriu investigação para apurar a ação dos militares, acionados por reclamação dos moradores de Lourdes, mas ninguém foi punido.

Guto Borges ao centro no Tico Tico Serra Copo – Foto: Carlos Hauck

Para o historiador e carnavalesco Guto Borges, figura central da folia belo-horizontina, as ações de violência, truculência e cerceamento de blocos por parte da Polícia Militar são dissonantes das diretrizes da Prefeitura. Um cenário refletido diretamente nos blocos carnavalescos mais periféricos. “Infelizmente, essa situação não é uma novidade. Acontece desde 2013, quando o Carnaval foi tomando forma na cidade. A PM me parece bastante desalinhada com as diretrizes que a Prefeitura tentou imprimir nesse carnaval. E algumas coisas parecem bastante recorrentes na atuação da PM. Uma delas foi a questão da dispersão por causa dos horários dos blocos, mas algo que aconteceu apenas em zonas que não são privilegiadas. Até porque a PM não atuou em áreas com trios elétricos na Zona Sul da mesma forma que atuou em outras regiões”, disse.

Guto Borges também lembra da operação “Tolerância Zero”, implementada neste ano pela PM para proibir carros de som nas ruas durante o Carnaval. Uma decisão que também carrega um preconceito, principalmente contra o funk. Vale lembrar que, ano passado, durante o desfile do bloco Chama o Síndico, na avenida Afonso Pena, vários carros de som realizaram baladas paralelas ao cortejo do bloco, com música sertaneja e eletrônica, e não houve qualquer repreensão por parte da PM.

“Isso mostra como a PM atua no Carnaval, silenciando algumas partes da cidade, assim como acontece fora do Carnaval também. O caso do funk é explícito. Essa restrição a carros de som quer dizer que existe um Carnaval correto, mas que o funk não se encaixa”, completou Guto.

Resposta da Prefeitura

A Prefeitura de Belo Horizonte informa que a decisão de encerramento antecipado da programação do Palco da Rua Guaicurus na segunda-feira de Carnaval foi tomada em conjunto com Polícia Militar de Minas Gerais, Guarda Municipal e Belotur por motivos de segurança, uma vez que os órgãos constataram uma escalada de ocorrências na região.