A Brincadeira, a construção e a aula

Dia intenso de encontros importantes, a surpreendente vivência em um domingo de mostra


Por Rafael Mendonça

 

Tatiana Costa e Rejane Farias/ foto: Rafael Mendonça

A AULA

Estar em uma mostra como Tiradentes é um mundo de possibilidades. Muitas vezes surpreendente. Veja este domingo. Era pra ser mais um dia de assistir a alguns curtas de amigos e que eu queria, era dia de ver o Todos os Paulos do mundo. Era dia de ver o show do Sérgio Ricardo.

21ª MOSTRA TIRADENTES – Na foto Glenda Nicácio – Foto Beto Staino Universo Produção

E o que aconteceu? Nada. Pois eram mais ou menos umas quatro da tarde quando ao zanzar para cima e para baixo atrás de assunto me deparo com uma mesa onde estavam duas das maiores pessoas, a atriz Rejane Faria e a produtora Grazi Medrado. Sentei rapidamente e o que era para ser rapidamente virou uma aula de umas oito horas sobre o cinema, sobre o negro no cinema e na vida. Calei-me e aprendi. Por essa mesa passaram professoras negras como a 

 

Tatiana Carvalho Costa, a cineasta Glenda Nicácio e seu parceiro de direção Ary Rosa, as atrizes do seu filme “Café com Canela”, Valdinéia Soriano e Aline Brune, a Bia, Rafael Conde o Maurílio Martins, que dirigiu a Rejane em “Quinze” e mais um punhado de gente.

Foi bonito ver essa turma, ouvir e se dar conta que a gente ainda é muito racista. Nós brancos. Ainda mais se homens e héteros.  A presença no cinema, projetos como a segunda preta em Belo Horizonte. O CachoeiraDOC com a força que tem aquele lugar, o desprendimento e as personalidades. Tudo isso me arrebatou e me deixou pensando por tempos e tempo. E ainda algumas horas depois. A gente ainda é muito racista. Por mais que não sejamos. Talvez este texto homenagem ao dia de ontem tenha rastros de racismo. Pois seria minha admiração fruto da simples admiração ou restos de uma coisa racista por me apaixonar por pessoas tão feras?

 

21ª MOSTRA TIRADENTES – Grazi Medrado Foto Beto Staino Universo ProduçãoFicarei com essa reflexão me assolando a mente. E com o coração arrebatado.

 

PS: Muito obrigado mesmo a Grazi, pessoa querida… Sem ela nada disso teria ocorrido. E extensivo ao Gabriel Portela, que de certa forma também possibilitou que isso acontecesse. Tomara que esta manhã de segunda tenha sido o mais tranquila possível.

 

 

CONSTRUÇÃO

Estreou também na tarde deste domingo o belo e sensível filme da Julia Baumfeld. “Todas as casas menos a minha”. O Beltrano bateu um papo com ela.

 

Conte um pouco da sua carreira e da sua “vida de artista”.

Não consigo identificar quando comecei a me interessar por Arte. Fotografia e video permearam a minha vida de uma forma natural e intensa. A proximidade com o Artista Plástico Fernando Fiúza com certeza foi um encontro muito forte pra mim. Fomos amigos desde quando eu era muito nova e a convivência em seu ateliê me alimentou muito de arte e música. 

Me graduei na Escola Guignard, lugar que gosto muito principalmente pelas pessoas que encontrei ali. 

Sobre a “vida de artista” o que me vem em mente é dizer sobre os recorrentes obstáculos para a circulação dos trabalhos e também escassa remuneração, ao mesmo tempo em que o trabalho é diário, de forma que tudo que faço é algo em potencial para se tornar uma criação. O trabalho se constrói em cima do cotidiano, sentimentos e olhares sobre as coisas e o tempo.

 

 

A câmera era, pelo visto, algo muito próximo pra você em sua casa. Como é isso?

Meus pais filmaram bastante em VHS no final da dácada de 80, durante meus primeiros quatro anos de vida. Esse material sempre foi muito precioso pra mim pelo estranhamento e encantamento que a passagem do tempo e aquela representação do passado me causam. Hoje percebo também que muito do meu interesse pelo video veio dessas imagens de arquivo, o qual desde cedo eu cuidei e decupei. Logo surgiu o interesse de também filmar no meu cotidiano, e agora tanto as imagens do arquivo da minha familia quanto de meus arquivos mais antigos são materiais para editar filmes e videos.

 

 

É um filme bem pessoal contando da sua vida e de sua família, como trabalhar isso?

Quando eu já trabalhava com video e fotografia, percebi que meu envolvimento com o arquivo dos meus pais não era ao acaso e que a vontade de transforma-lo em trabalhos era grande, principalmente por perceber ali representações de coisas muito fortes pra mim. Ao mesmo tempo eu tentei encontrar uma forma disso não se tornar algo muito ensimesmado, pois eu queria encontrar formas de diminuir a carga autobiográfica das imagens. Editei o “Todas as casas menos a minha” partindo da construção da casa, a qual simboliza consolidação e também ruína de uma família.

 

 

Um filme também sobre construção, você consegue fazer alguma analogia com sua própria vida de adulta?

A gestação do filme foi lenta. Percebo que o processo se iniciou na digitalização das fitas, que fiz na minha adolescência, e depois no constante retorno às imagens com espaçamentos de tempo, percebendo coisas diferentes a cada vez. Aos poucos a carga emocional foi se modificando e comecei a olhar para as imagens de forma mais clara e impessoal. Acredito que todo esse processo caminhou junto a minha maturidade, que possibilitou outras maneiras de perceber meus laços familiares. 

 

Quando a ruptura se dá? Como chegou a ideia de fazer o filme?

A edição das imagens se deu em 2015, e apesar de perceber que faltava uma voz em off no filme, eu não sabia como dizer daquelas questões tão intimas. Somente em 2017, enquanto eu ouvia uma gravação da consulta do meu mapa astral, percebi que naquela leitura de casas astrais estava um meio de colocar a voz sobre as imagens, e terminei o filme.

 

Como entra a coisa do mapa dos signos nisso tudo?

O mapa astral acabou abordando muitas das questões as quais eu já queria citar no filme. Foi surpreendente quando tantas coisas vieram à tona a partir da leitura da posição dos planetas nas 12 casas astrais. O fato de falar de coisas íntimas através de uma visão astrológica que é tão grandiosa, misteriosa e abrangente, trouxe o tom um pouco mais impessoal que eu procurava para o filme.

 

E a coragem pra isso tudo, pra colocar em um filme. tem a ver com a coragem que a moça do mapa te coloca?

Acho que a coragem que ela diz está presente em todo esse percurso, não apenas em me expor no filme, mas em não desistir da arte.

 

 

 

 

reprodução facebook

A BRICADEIRA           

 

Tinha pedido um texto sobre seu filme que passou na tarde desse sábado ao cineasta Rafael Conde, ele nos conta como se deu o processo de criação e filmagem. Com vocês Rafael Conde.         

 

A realização do filme A Brincadeira, que estreia na Mostra de Cinema de Tiradentes, surgiu de um projeto mais amplo que consistiu em encenar no teatro e no cinema um mesmo texto de origem literária. O objetivo era reconhecer algumas especificidades do trabalho do ator, dos elementos de linguagem das três áreas (literatura, teatro, cinema), testar diferenças e particularidades em suas práticas, reconhecer alguns procedimentos comuns no partilhamento de uma mesma estória originária. Um objetivo que contextualizaria o reconhecimento de um estado das técnicas teatrais e tecnologias audiovisuais disponíveis nos nossos dias, especificamente a acessibilidade de recursos digitais do filme incorporados ao teatro e a praticidade do arquivamento do espetáculo teatral nesses novos meios de registro de imagens e sons. Produzidos simultaneamente, no filme e na peça (a peça estreou no CCBB), o foco da experiência aos poucos foi se deslocando para o trabalho do ator e sua presença, a busca de uma ‘verdade’, em um sentido sempre inventado pelo projeto da cena, e de como o lugar da cena e as formas de encontro com o espectador transformariam esse mesmo senso de verdade. Essa verdade poderia ser definida como uma presença que se constrói entre o automatismo do registro da câmera, que se desdobra em presença sempre associada ao “real” e à “impressão de realidade” no cinema, e do ser imaginário presente no espaço aberto do palco, a verdade sempre pactuada entre a cena e o espectador no espaço também imaginário do teatro.

Para quebrar essa associação direta da cena e do trabalho de fragmentação espacial e temporal da cena, o filme A brincadeira, com o trabalho da câmera, aborda a estória de Tchekhov em três eixos distintos de presença “cinematográfica” dos atores que se amalgamam: ora encenam-se “pessoas” no casal comum lendo um texto numa ação de seu cotidiano, ora um casal de atores interpretando pessoas que ensaiam um texto, e ora o casal, personagens da ficção de Tchekhov, Nádia e Ivan, no olhar e gestos desses dois atores-personagens-pessoas.

O espaço é um quarto predominantemente branco, realista e neutro, na tentativa de situar os personagens e a trama num mundo suspenso entre o espaço mágico do teatro e o espaço mágico do filme, espaço imaginário do teatro, fruto do acordo entre cena e espectador, e o espaço real do cinema, que leva o espectador para o local mesmo das ações. A fotografia e o trabalho de luz contribuem para essa ideia de “natural” e “real” da cena, embora esteja exposto para o espectador que se trata de uma encenação, uma vez que não estamos no ambiente real do conto, uma montanha coberta de neve.

Uma montanha coberta de neve. Se pensarmos nesse jogo de cena no limiar do procedimento documentário (apreender no suporte do filme um instante do acidente ou acaso desse casal verdadeiro) e do uso de um jogo da decupagem clássica (plano e contraplano, ações dentro de quadro e fora de quadro), o momento do set foi pensado em torno do projeto de fazer crer, de usar a potência do trabalho da câmera em dar vida aos personagens pela objetividade fotográfica e pela montagem espacial e temporal da trama. Nesse sentido, os recursos de montagem pensados na filmagem fazem uso de duas articulações entre tomadas de cena: o plano e o contraplano, a ação e reação dos dois atores que se posicionam frente a frente na cama, criando a espacialidade total inserida no filme. Nesse recurso tudo participa do espaço do drama, o quadro – o que o espectador vê, e o extraquadro – o que não vemos, mas que continua como espaço solidário e parte do espaço total do filme, que é o mundo da ficção também solidário com o mundo real. E ainda, a articulação de planos mais abertos com o plano detalhe na intenção de buscar no olhar do ator a sinceridade da fala e os momentos em que o estar solidário com o ator nos transportaria com ele não apenas para outro espaço (na realidade, uma montanha coberta de neve), mas para a verdade de Ivan e Nádia presentes no filme.

            Essa fronteira entre três presenças também foi testada com procedimentos práticos de filmagem. Não haveria ensaio de tomadas nem marcação de cenas durante o set. Sem o conhecimento dos atores, ficou estabelecido que no momento de rodar o plano, quando uma música que remetesse ao clima do conto fosse acionada (uso esse recurso para separar o momento de preparação técnica do set – posicionamento de câmera, luz e som – do momento em que os atores e equipe se concentram para rodar a cena), a câmera e a captação do som direto também seriam acionadas. O objetivo foi registrar os atores “caminhando” nesses três territórios da cena, em três presenças que atestassem essa verdade buscada pelo filme e seus recursos: o casal real em sua intimidade particular; a “chegada” dos atores para o estado da cena; e, finalmente, os atores com os personagens sedimentados em seus gestos na cena iniciada após as palavras “som, câmera, ação”. Esses momentos documentaram no filme aqueles três atores buscados pelos três procedimentos de intervenção da câmera. E assim foi encenado o filme, que finalmente foi finalizado para sua exibição em Tiradentes.

 

Rafael Conde