As almas dos ossos

Mostra Cantautores "está aí para provar que a matéria em questão, longe do extinção, é, antes, renovável e sem prazo de validade"


Por Daniel Barbosa

Publicado em 09/11/2018

Mostra Cantautores – 04/11/18 ©Pablo Bernardo

Um panorama de invenção e fôlego e frescor. A Mostra Cantautores, já em sua metade final de realização e contabilizando shows memoráveis, é um deleite por várias razões, mas se destaca, talvez, o fato de ela escapar de rótulos e não caber em escaninhos. Houve, há não muito tempo, essa conversa sobre o fim canção, e a Mostra está aí para provar que a matéria em questão, longe do extinção, é, antes, renovável e sem prazo de validade. Os shows de François Muleka e Juliana Perdigão na terça-feira e de Rafa Castro e Aline Frazão na quarta são prova disso. Foram só belezas, que dispensam categorias e pedem pura e simples contemplação. Ou não. Porque nenhum deles está fazendo música para confortar. Talvez para confrontar, instigar, incitar ou fazer pensar.

Iniciada no último sábado com uns shows que, putz, perdi, do Thiakov, da Ângela Ro Ro, do Thiago Corrêa e da Zelia Duncan, mais os que pude desfrutar –  a potência arraigada da Cátia de França, no domingo, além dos de terça e quarta  -, a Mostra revela a maleabilidade, a flexibilidade e a extensão do osso. O formato solo que é premissa do projeto – o cantor (que vozes lindas, particulares e plurais!) e seu instrumento, apenas -, a seu modo, revela um parto: a música como nasceu, a essência dela, o tutano.

Mostra Cantautores – 06/11/18 ©Pablo Bernardo

O que François Muleka traz à luz não tem fim, não tem refrão e não tem repetição. O espanto começa pelo fato de ele escolher como instrumento que acompanha sua voz o baixo, reconfigurado ali numa outra coisa, que não tem a ver com a marcação precisa, digamos, do reggae, nem tampouco com o virtuosismo fluorescente e cheio de notas de um Primus ou de um NoMeansNo. É um baixo harmônico e melódico, mais próximo do violão ou da viola ou, ainda, antes e além disso. E a voz de Muleka vai aonde ele quer.

Mostra Cantautores – 06/11/18 ©Pablo Bernardo

Da Ju Perdigão, empunhando uma guitarra de efeitos transcendentais, cabe dizer que é bem MPB, Música Punk Brasileira – punk sem seguir cartilha, punk porque curta, direta, objetiva e contundente, pero sin perder la ternura, e música brasileira porque sim, porque traz toda a bagagem que carrega de Noel Rosa a Rômulo Fróes, passando por As Mercenárias e Jards (que, putz, re-lamentando, não vi).

Na quarta-feira, Rafa Castro, ao teclado, abriu aos ouvidos o mar sereno e profundo de sua música. A reverência confessa à música mineira – particularmente o Clube da Esquina, Toninho Horta, Túlio Mourão (com quem já desenrolou umas poucas e boas) – não escamoteia uma impressão digital forte. E na sequência, no mesmo dia, a angolana Aline Frazão, com sua rítmica peculiar, composições idem e um sotaque delícia, fez uma apresentação magnética, dona do espaço físico e sonoro.

Mostra Cantautores – 07/1/18 ©Pablo Bernardo

Salta aos ouvidos e aos olhos a escolha que cada um fez do instrumento que lhe serve de veículo para a canção – eventualmente dispensável: quando à capela. O baixo, a guitarra, o teclado, o violão foram os eleitos, respectivamente, por Muleka, Juliana, Rafa e Aline. Isso só me reforça a impressão de que são artistas do tamanho que são porque têm muita música dentro si, que sai clara, límpida, espontânea, independente da estrutura ou do arranjo.

Vale demais conferir esse estado bruto da matéria que nasce diamante. A Mostra Cantautores teve nessa quinta-feira shows da mineira Nath Rodrigues e do cabo-verdiano Tcheka, na sexta terá Chico Saraiva e Affonsinho e, fechando os trabalhos, no sábado, com Joyce Moreno e abertura de Antonio Loureiro e João Bosco, com abertura de Vitor Santana.