Um fim de semana de rolês marcantes em BH

Fui conferir três eventos com atrações locais e nacionais de diferentes cenas que rolaram nesse último e agitado fim de semana: Rakta e Carather, Divina Maravilhosa e Rincón Sapiência


Por Lucas Buzatti

Foto Rafael Mendonça

É louco pensar que, não faz muito tempo, pairavam sobre nós, belo-horizontinos, máximas como “BH não tem nada para fazer” ou, a mais pejorativa, “BH é uma roça”. Nos últimos anos, a cidade vive uma efervescência cultural que faz pipocar shows e festivais dos mais variados estilos musicais, tanto (e principalmente) de produções locais quanto nacionais e gringas. Se antes faltavam opções, hoje é preciso ser mais onipresente que o Ed Marte para acompanhar tudo. Mas o corre vale a pena. Afinal, conferir rolês de diferentes recortes ajuda a entender como cada cena se organiza, além de abrir caminhos e propiciar valiosas experiências culturais e antropológicas. Foi o que eu, rato de show que sou, fiz no fim de semana passado, curtindo e tomando nota de três eventos marcantes e dissonantes entre si que rolaram na cidade.

A jornada começou na quinta-feira, com a primeira apresentação das paulistanas do Rakta em terras mineiras, que aconteceu n’A Obra. Antes do trio, quem transformou a casa num verdadeiro inferno foi o Carahter, uma das bandas de metal mais importantes de BH, que fez história nos anos 2000 e voltou, depois de um hiato de oito anos, com o disco “TVRVO”, lançado no ano passado. Para o público atento, que começava a encher a casa, Renato Rios Neto berrou seus guturais com vontade, amparado por uma base instrumental invejável. “Somos nós cinco contra o mundo, porra”, gritou. “Foi incrível, cara. Muito intenso. Não rolou aquele nervosismo do show de estreia do álbum, estávamos mais à vontade. Mesmo sem o Grilo (baixista), que não pôde comparecer”, explicou Renatão. Enquanto isso, a banquinha de merchan do Rakta fervia. “Tocar com o Rakta foi bem massa. É uma banda que foge da nossa proposta, mas que de certa forma também casa com ela, já que elas têm essa coisa de não se prender a fórmulas e rótulos. Dentro do metal, também somos assim”, disse o vocalista.

Carather / Foto: Lucas Buzatti

De fato, tarefa inglória é tentar definir o som do Rakta. O trio, que lançou o elogiado “III” em 2016, deixou a Obra totalmente hipnotizada. Enquanto a baixista Carla Boregas e a baterista Nathalia Viccari montam uma cama punk, com linhas retas e aceleradas, a vocalista e tecladista Paula Rebellato pira no synth e nos pedais de guitarra que jogam efeitos, ecos e camadas em seu vocal ora falado, ora gritado. Uma espécie de post-punk-neo-bruxo-psicodélico, rótulo bizarro que eu e alguns amigos criamos, já breacos, no fumódromo. “Foi um dos shows mais legais que eu já vi na Obra, nesses últimos 15 anos. Achei a ambiência incrível, nessa onda noisey-ambient-bruxaria-transcendental delas. As minas são zica”, pontuou o DJ e produtor Richard Garrell (Alta Fidelidade, Eremita). “O show tem tudo a ver com um espaço menor, porque existe ali, no reverb e no delay que transbordam do som delas, uma tridimensionalidade física que é muito importante. Fosse outro espaço, talvez não haveria o mesmo impacto. Ali, no inferninho, não dava para fugir. Ou você entrava na viagem ou saía fora”, disse.

Foto: Lucas Buzatti

Eu não só entrei na viagem como achei o show do Rakta até curto demais. Tinha tempos que não via, realmente, um esquema tão musicalmente acertado n’A Obra, e com duas bandas que guardam diferenças estéticas e de conceito. “Eu estava até apreensivo, porque são públicos distintos, né? Apesar de o Rakta ser pesado, o público não é o mesmo do metal ou do hardcore. E rolou legal, todo mundo parou para assistir, agitaram até um mosh. Eu sempre brinco que o mosh dos shows do Carahter é mais pagão. Não é aquele mosh testosterna do metal. É quase um mosh primitivo. Mais um encontro de corpos que violência”, disse Renato. “O Renatão é uma entidade, né cara. É o Morrissey do metalcore. Um frontman nato. Uma onda diferente do Rakta, em que a viagem é entre elas mesmo, mais introspectiva. E, comparando com outros shows delas, que eu já tinha visto ao vivo, achei esse mais interessante, menos roqueiro. Que é, talvez, um problema dessas gravações de internet, né. Como você não está ali no meio, não tem essa tridimensionalidade toda, é seco”, viaja Garrell.

Foto: Lucas Buzatti

ManiFESTAção

Na sexta-feira, foi a vez de colar com as minas, as manas e as monas na Divina Maravilhosa, festa engajada que se debruça sobre a liberdade de gênero, propondo um interessante deslocamento da cultura queer em BH. Na esteira de outros rolês, como a Gaymada e o Duelo de Vogue, o evento leva, desde 2015, o discurso (e a animação) LGBT para outros circuitos que não apenas o gay. Depois de trazer nomes como Liniker e Johnny Hooker, na quarta edição foi a vez de enfocar o feminismo e ocupar a tradicional Serraria Souza Pinto, espaço público e pouco acostumado com festas do tipo.

Para a ocasião, um line-up voluptuoso e ousado: o escracho feminista da carioca MC Carol, seguido do “terrorismo de gênero” da transexual paulista Lynn da Quebrada e, para fechar, o vozeirão queer de Marcelo Veronez, num show paulada, com participação de ninguém menos que a rainha Elza Soares. Infelizmente, a dezena de catuçaís que ingeri não me permitiu registrar os shows em fotos com foco, enquadramento e sentido. Mas em breve a página da festa deve soltar umas bem legais, como essa aqui, do Flávio Charchar:

Foto: Flávio Charchar

“Cantar com a Elza foi uma experiência maior do que eu pensava, mas não num lugar de nervosismo, de ansiedade. Mas de tranquilidade. Ela é muito zen, cara. E ela é muito honesta, ela te olha de verdade. E foi muito bom trocar esse olhar com ela. É a figura que fala com a atualidade. Das cantoras da geração dela, é a mais contemporânea e a mais velha de todas”, diz Veronez, que mostrou pela primeira vez músicas do seu aguardado disco de estreia, “Narciso Deu Um Grito”, que sai ainda este ano. Com a Elza, Veronez cantou músicas como “Volta Por Cima” e o hino “Maria da Vila Matilde”, que teve participação do coletivo Negras Autoras.

Tal como a festa propõe, o público era bem diverso. E parecia mais atento aos shows, comedido, dando até uma certa impressão de timidez que entortou a expectativa-senso-comum de uma “festa gay”. “Isso é bom, inclusive, para desmistificar a ideia de que o público LGBT está sempre com a sexualidade à flor da pele. Somos diversos, como todas as outras pessoas. Essa ideia de que festa LGBT é cheia de beijaços e pegações já deu”, assinala Gigi Favacho, produtora da Divina Maravilhosa. “Quando eu vejo um público muito diverso no evento, pessoas não binárias misturadas com homo e heterossexuais, penso que a gente está indo numa direção certa, de amplificação do discurso. A pauta LGBT não tem que passar só pela timeline das pessoas. Tem que entrar nos seus lugares de convívio, nas suas conversas de boteco”, defende.

Mas, apesar da boa onda da festa e de toda a comunicação enfática quanto à tolerância zero para assédios, teve homem fazendo merda – e provando o quão necessária é, de fato, a luta contra o machismo. “Uma atriz estava fazendo uma performance, nua, com o corpo coberto de glitter. E um rapaz passou a mão no corpo dela de forma desrespeitosa. Imediatamente, os seguranças o pegaram, tivemos um papo sério com ele e o colocamos para fora da festa. E ele ainda argumentou: ‘Peraí, eu sou gay. Você acha que eu assediaria uma mulher?’ Aí vemos que a misoginia ainda está em todos os lugares. Mesmo dentro dos próprios movimentos de resistência”, afirma Favacho, reiterando o papel da arte nos debates políticos. “O processo criativo nunca esteve dissociado das questões sociais e do posicionamento político. Falar dessas questões em separado é contraproducente. Elas estão muito interligadas”.

Foto: Lucas Buzatti

Rap no palco, abuso nos bastidores.

Quem é do rap conhece bem esse cruzamento entre social e cultural, já que o engajamento e as letras de protesto são comuns ao gênero. Um dos MCs mais sagazes da atualidade, Rincon Sapiência, é desses artistas que usa as rimas para levantar debates sobre temas urgentes como o racismo e a desigualdade social. Mais que isso, o rapper paulistano, dono de flow e timbre destacados, é uma máquina de referências que vai das raízes africanas à cultura pop, de uma roda de jongo a um filme de Tarantino. O show do cara aconteceu no sábado, na Fábrica, um galpão abandonado bem style na avenida dos Andradas.

A casa estava lotada por uma galera novinha que aguardou, paciente, até às 3h para ouvir o autor de “Linhas de Soco” e “Ponta de Lança” colocar a casa à baixo. O Rincon é incrível, mesmo, e valeu a pena esperar. Mas foi um bocado cansativo – ainda mais para quem já passou dos vinte e poucos anos. Além do mais, a espera teve um motivo chato: o buraco rolou depois que a festa Quem Tem Swing e o show da banda 12duoito foram limados da programação, sem mais nem menos.

A história deu pano para manga e expôs a molecagem do modus operandi de muitas “grandes” produtoras de “eventos tops” de BH. Quem colocou a boca no trombone foi a Luísa Loes, que assina a produção da Quem Tem Swing junto com a turma do Santa Maria. “A gente recebeu o convite por parte da Play Cultural, que fez o evento em parceria com a Macaco Prego. Essas produtoras estão acostumadas a fazer festas para o público A, classe média alta. Viram o material da Quem Tem Swing e ficaram interessadas, exatamente porque o nosso público é outro e dialoga mais com o Rincon, em fazer a festa na pista dois. Pediram o orçamento do uso da marca, do show e dos DJs. Quando mandamos, disseram que tinham pouca verba e ofereceram a metade do valor. Mas aceitamos, porque queríamos fazer esse rolê com o Rincon”, conta Loes.

E aí começaram as confusões. “Eu estava super empolgada e acabei dando, de mão beijada, nosso plano de comunicação para a Play. Pensei numa promoção e disponibilizei 15 contas de amigos da festa para convidar pessoas para o evento. Eles falaram que me passariam o contrato e nós começamos a trabalhar. Mas tudo começou a ser motivo para não mandarem esse contrato”, relembra Loes. “Por exemplo, queriam saber quem eram as pessoas que fariam os convites. Juntei os nomes e mandei a lista por e-mail, pedindo os links do Sympla que dariam cortesias a essas pessoas e, mais uma vez, o contrato. Aí me ligam no fim da tarde e dizem que a festa não estava virando, que só tinham vendido 160 ingressos e que precisavam cortar gastos. Falaram que teriam que cortar a 12duoito e pagar menos da metade do combinado, sendo que eu já tinha feito todo esse trabalho de comunicação para a festa deles. A resposta foi, tipo: ‘É pegar ou largar. Vocês são o menor dos meus problemas’”, afirma.

Depois disso, foi treta atrás de treta. A Loes postou um texto no Facebook, contando que a coisa fedeu a ponto de um dos produtores ter a audácia de ligar para o companheiro dela para ofendê-la. O evento sumiu do ar e pintou um novo, sem a festa. O público fiel da Quem Tem Swing ficou bolado e começou a inquirir as produtoras sobre a mudança abrupta na programação. “Eles não deram a menor justificativa da saída da festa e liberaram off só para mulheres. Um movimento de marketing que queriam fazer desde o começo e que eu bati o pé, já que quem vai à Quem Tem Swing são jovens emponderadas, que não aceitam mais esse tipo de estratégia machista”, assinala a produtora. “Não teve boicote ao evento, só explicamos para o nosso público o que estava acontecendo, diferente do que eles fizeram. E eu, como feminista, não podia deixar os abusos passarem batido. Fui muito humilhada nesse processo todo”, defende Loes.

Quando a coisa veio a público, a Play Cultural se manifestou em sua página pedindo desculpas pelo ocorrido e liberando a gratuidade total do evento, com o ressarcimento dos ingressos anteriormente adquiridos. “O que mais me incomodou nessa história toda foi a postura antidemocrática e a falta de transparência dessas produtoras, porque tudo mudou quando eu vim a público. Mudaram o tom”, diz Loes. “Mas ligaram para o meu namorado, de novo, que não tinha nada a ver com a produção, oferecendo para pagarem o valor total se a gente ficasse quieto. Achei tudo muito bizarro”, revela.

No fim das contas, as produtoras se deram muito mal e pagaram pela sequência de vacilos, levando um prejuízo certeiro, tanto financeiro quanto de imagem. E, claro, perdeu também quem foi ao evento e teve que ficar segurando o sono e bebendo cerveja cara até às três da matina para ver o Manicongo – com um som bem zoado, diga-se de passagem. Pelo menos, teve o funk do Lá da Favelinha, com apresentação dos Passistas Dancy, que ajudou a passar o tempo. E a sorte é que o Rincon é foda. Mas nem de longe foi o melhor rolê dessa trinca do fim de semana, deixando aquela vontade de assistir às pancadas sapientes novamente, em outra oportunidade. Segue o baile, amizades.