O Santander quer nos civilizar


Por Leandro Lança

“Travesti da Lambada”, de Bia Leite: pinturas de crianças com trejeitos não-heteronormativos

Porque a pureza é um mito e toda unanimidade é burra, e também porque freudianamente quem desdenha quer comprar, em parte sempre me regozijo quando vejo casos de censura como este. Para quem ainda não sabe, o Santander Cultural encerrou neste domingo, 10 – um mês antes do previsto –, a exposição Queer Museu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira em Porto Alegre, (onde 270 obras de 85 artistas abordavam questões de gênero, diversidade, queer, temáticas LGBT) depois que a mostra recebeu uma série de ataques desferidos por pessoas identificadas com o Movimento Brasil Livre (MBL).

A censura desde sempre teve o efeito paradoxal de chancelar o poder social da arte e promovê-la com mais eficácia do que qualquer outro instrumento. Exatamente por causa desse ato censório promovido pelo MBL e Santander eu soube da existência dessa maravilhosa exposição composta por alguns nomes já até consagrados da arte brasileira como: Volpi, Portinari, Flávio de Carvalho, Lygia Clark, Alair Gomes, Leonilson e Adriana Varejão. Se eu, que tento acompanhar ao máximo o “mundo da arte”, não sabia da existência dessa exposição, e agora sei, imaginem quantas pessoas não receberão essa boa nova nos próximos dias, meses ou anos? Assim se deu com a obra de Márcia X (censurada pelo Banco do Brasil em 2006), com a obra de Nan Goldin (censurada pelo Oi-Futuro em 2012), bem como Robert Mapplethorpe (censurado nos EUA em 1990) . Sobretudo nos dias que correm, qualquer arte censurada será “religiosamente” mais vista e mais estudada do que qualquer outra.

Por outro lado, toda censura produz uma espécie de incompreensão, uma vez que a arbitrariedade do juízo do censor procura sempre disfarçar uma máquina burocrática complexa. Em sua nota oficial, o banco (porque acima de qualquer outra coisa o Santander Cultural é um banco) afirma que:

“Nosso papel, como um espaço cultural, é dar luz ao trabalho de curadores e artistas brasileiros para gerar reflexão. Sempre fazemos isso sem interferir no conteúdo para preservar a independência dos autores, e essa tem sido a maneira mais eficaz de levar ao público um trabalho inovador e de qualidade. Desta vez, no entanto, ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição “Queermuseu” desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo.”

É preciso considerar que além do poder proporcionado pelo capital econômico de umbanco como o Santander, o governo brasileiro confere a este tipo de empresa (via leis de incentivo à cultura como a Lei Rouanet) autoridade para escolher qual arte será financiada pelos cofres públicos, bem como qual será vista ou não pelo público. Com a posse agora de dois capitais, o econômico e o cultural, as instituições privadas se valem do último para aumentar o primeiro. Afinal são empresas, e aproveitam uma ótima jogada que só lhes trazem benefícios. Os impostos pagos que antes beneficiavam diretamente apenas o Estado, agora se transformam numa poderosa arma de marketing empresarial. E como bem disse Chin-Tao Wu, no ótimo livro “Privatização da Cultura”, “Sugerir que o museu pode, como inquilino da corporação, manter sua independência curatorial sem esterilizar política ou socialmente suas exposições é forçar os limites da probabilidade.”

Não é, e nunca foi, de interesse das corporações que exibem arte e cultura, por exemplo, associar suas marcas a conteúdos polêmicos, críticos do status quo ou em algum nível dissonantes do produto que pretendem vender. Interessa ao “gosto corporativo” eventos espetaculares e acríticos, projetos que alcancem sucesso quantitativo e de mídia, sem manchar o nome da instituição ou “provocar” qualquer grupo organizado da sociedade civil. Em outras palavras, o espetáculo é útil quando serve à hierarquia social e ao bom funcionamento do Estado, não proporcionando exemplos de outros modelos de organização. Para que assim seja é corriqueiro invocar uma definição de arte digerível pelo senso comum. Veja como em sua nota oficial o Santander faz isso:

“Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana. O Santander Cultural não chancela um tipo de arte, mas sim a arte na sua pluralidade, alicerçada no profundo respeito que temos por cada indivíduo. Por essa razão, decidimos encerrar a mostra neste domingo, 10/09.”

Quando o banco afirma que o propósito maior da arte é “elevar a condição humana”, ele quer dizer em outras palavras que o propósito da arte é educar. Educar que, em primeira e última análise, no raso e no fundo, quer dizer civilizar (o mesmo que “bons costumes”), que por sua vez é o mesmo que controlar. A arte, que quase sempre não é feita para entender, não se deixa controlar. Isto enfurece a muitos que temem o desconhecido e o incontrolável, ao oposto de um Paulo Leminski que escreveu o seguinte:

um poema

que não se entende

é digno de nota

a dignidade suprema

de um navio

perdendo a rota

Se por um lado devemos lamentar nessa história o crescimento de um movimento protofascista como o MBL e a autonomia de uma instituição privada de privar o público ao acesso à uma exposição de arte que foi financiada com dinheiro público, por outro lado, é sempre bom lembrar que a censura mais dá a ver do que esconde. Só no plano imagético, desde o advento das redes sociais, quando uma obra de arte é censurada imediatamente suas imagens são hiper expostas na internet, alcançando um público incalculável. Não raro o artista censurado passa a receber mais convites e seu valor de mercado aumenta. Como se não bastasse, todo ato censório acaba sempre mostrando mais acerca da natureza do censor do que do censurado, afinal, como dizia Georges Bataille, “aquilo que mais violentamente nos revolta está em nós”.

*Leandro Lança é sociólogo e mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal de Minas Gerais