O governo é do mercado como o céu é do condor
Por João Gualberto Jr.
“Dados bem torturados confessam qualquer coisa”, é uma piada maldosa sobre o uso de ferramentas estatísticas nas ciências sociais. Dito de forma mais simples, “papel aceita qualquer coisa”. Foi o que fez Michel Temer ao comemorar o “fim da recessão” munido das informações do IBGE sobre o PIB trimestral. O “presidente” leu o que interessava a ele, foi uma meia-verdade em tempos de pós-verdade.
Sim, o Produto Interno Bruto cresceu 1% no primeiro trimestre do ano frente ao último de 2016. Depois de oito quedas consecutivas, é um alento. Mas não se pode falar em crescimento sustentável. Primeiro, porque temos apenas um dado positivo inicial e ainda não é possível apontar tendência. Segundo, porque o crescimento só ocorreu na comparação com o imediatamente anterior e houve queda em relação ao primeiro trimestre de 2016. Por fim, quem puxou a subida foi mais uma safra recorde da agricultura, fator que se deve mais aos fenômenos naturais favoráveis.
Mas, não obstante os 14 milhões de desempregados, Temer comemora para sinalizar otimismo. O peemedebista, assim, tentou fixar mais um alfinete na faixa presidencial junto à lapela, comunicando-se com seu principal interlocutor: o mercado-entidade. Por ele Temer chegou onde chegou, e por ele, se e até quando quiser, fica onde está.
Seu agente-aliado na consumação dos serviços ao “principal” é Rodrigo Maia (DEM), autor de uma das frases mais significativas dos últimos tempos na política brasileira: “a agenda da Câmara está em sintonia com o mercado”, discursou ele a empresários. Se a fala foi por convicção ideológica ou teve apenas intuito de “pedir bênção”, não interessa. O presidente da “Casa do povo brasileiro” a conduz segundo a agenda do capital. Mas os interesses do povo e os do mercado andam na mesma direção? Os interesses do mercado coincidem com os do povo e favorecem a ambos? Ou, ao contrário, há mais pontos de contradição e conflito entre as duas agendas?
No começo de 2016, quando Dilma Rousseff ainda era presidente da República, Paulo Skaf, peemedebista, amigo de Temer e presidente da Fiesp, afirmou que a Ponte para o Futuro era um “programa alternativo de governo”. Poderia ser tratado também como programa de governo alternativo. O documento foi bancado pela federação industrial paulista com outras entidades empresariais por meio da Fundação Ulysses Guimarães, do PMDB – que ironia à memória do doutor. A Ponte representou a primeira grande consolidação dos anseios da elite empresarial brasileira em contrariedade à política econômica esquálida do governo petista em seus estertores. Dito de outra forma: foi o contrato oferecido a Temer e aliados para embarcarem na conspiração golpista e adotarem uma agenda de mercado que não passou pelo crivo das urnas. E jamais passaria.
No documento endossado pelo PMDB, consolidado em 2015, estão os genes de todas as revisões legais promovidas em pouco mais de um ano do “novo governo”: as propostas de reforma, os planos de arrocho fiscal, a flexibilização de direitos. Ele trouxe críticas à (suposta) obsolescência não só da legislação trabalhista, como também da Constituição. Curioso constatar que a reforma da Previdência do governo se dá por Proposta de Emenda à Constituição (PEC), assim como a tese de antecipação da eleição direta a presidente, agora. Por que atacar esta ideia por ser inconstitucional enquanto aquela é saudada como necessária? Ora, toda PEC nasce por um interesse de se revisar a Carta, logo, de um anseio inconstitucional. Em 18 anos desde a promulgação, já foram consolidados mais 90 anseios inconstitucionais.
O governo em mandato surgiu de uma trama que teve o mercado-entidade como um de seus principais artífices, ascendeu ao posto por expedientes moral, política e juridicamente questionáveis e atua em favor de seus patrocinadores. Questiona-se a necessidade de se reformar as legislações previdenciária e trabalhista. Não há consenso sequer nas altas esferas técnicas. Há argumentos pró e contra, ambos respeitáveis e um tanto influenciados por posicionamentos políticos. A grande questão é a forma como estão sendo tocadas as matérias, que terão profundo impacto na sociedade, e a cara que estão ganhando, favorável à preservação de regalias exclusivistas e históricas.
O “The Intercept” revelou, por exemplo, que pelo menos um terço das emendas ao projeto de reforma trabalhista aprovado na Câmara foi redigido nos escritórios jurídicos de entidades patronais e somente encampadas pelos parlamentares em plenário. Tem como serem boas essas iniciativas para o trabalhador? Ou luta de classes no Brasil contemporâneo é só história de lobo mau esquerdista? O dia que livre negociação entre patrões e empregados for realizada em condição de igualdade de poder de barganha estaremos em um novo patamar de sociedade.
Leis e Estado existem para se preservarem direitos dos grupos sociais mais frágeis e garantir padrões de comportamento dos indivíduos (dá-lhe Hobbes!). Acontece que vivenciamos no país uma fase de revisão e liquefação desses marcos institucionais: se se relativizam direitos, revisam-se leis, repensam-se os papéis de Estado e alteram-se profundamente suas políticas.
Sejamos sinceros: do lado de baixo da pirâmide, a emenda do corte de gastos, as reformas da previdência e a trabalhista, toda essa revisão institucional é lida como esforço poderoso de garantia de preservação e acumulação de capital, que deixaria de ser redistribuído a toda a sociedade, em tese, por meio de carga tributária. Leis flexíveis que nascem de direitos reinterpretados permitem, no médio prazo, que se pague menos impostos, visto que um Estado menos presente se tornaria mais barato e até abriria mais espaço para que a iniciativa privada avance sobre áreas que atualmente são estatais.
A consequência do redesenho da República não é o crescimento da atividade econômica e da empregabilidade, como apregoa a cantilena do mercado. A consequência são ampliações de margens de lucro, o entesouramento dos resultados que deixarão de ser tributados, a acumulação de poderes e a consolidação da plutocracia. Constrói-se, dessa forma ainda, a certeza do comprometimento da União em honrar com os serviços de sua dívida pública, que chegam a consumir 43% do orçamento sem qualquer respingo de tradução dessa bagatela em ações públicas.
Thomas Pikkety, Amartya Sen e tantos outros pensadores, o próprio FMI (quem diria!), todos atestam que a desregulamentação da atividade econômica em uma sociedade, seja a produtiva ou a financeira, suscitam historicamente maior desigualdade de renda. Frear essa tendência é papel de Estado, recolhendo o muito de poucos e pulverizando-o por meio de políticas públicas. É lamentável e deprimente quando os homens de governo atuam – e o assumem! – para fazer do Estado instrumento não de favorecimento de mobilidade social, mas, ao contrário, de preservação de um status quo amplamente desigual. Desvirtuam-se valores republicanos profundos assim.
A Folha publicou pesquisa segundo a qual 17% dos brasileiros preferem, hoje, a preservação de Temer no comando do governo. Para a faixa de entrevistados com renda superior a dez salários mínimos, a adesão à permanência sobe para 30%. Para quem o governo governa? Quem é o dono da agenda da “Casa do Povo”?
Política
João Gualberto Jr.
|Jornalista, economista e cientista político.