O carnaval de Belo Horizonte
Com seu olhar único Juca Ferreira escreve, com exclusividade para O Beltrano, sobre o que se tornou um dos maiores carnavais do Brasil
Por Juca Ferreira
Publicado em 27/02/2019
O atual carnaval de Belo Horizonte é uma conquista política e cultural dos movimentos que aconteceram na cidade na última década. Esses jovens tiveram que enfrentar o autoritarismo do governo municipal de então e aos poucos foram se constituindo como um movimento. Ao se manifestarem, refletirem e acordarem para urgência de suas demandas foram experimentando a agridoce alegria dos que lutam coletivamente.
Os que detinham o poder municipal não estavam preparados para se relacionar com movimentos sociais que reivindicavam o direito à cidade e a reação foi autoritária e repressiva.
O movimento, longe de refluir, ganhou alento no enfrentamento com as autoridades municipais e aos poucos foi se politizando e se encaminhando para desafiar o poder local.
Demandas cidadãs de liberdade e alegria ganhavam as ruas e assim foi se formando esse processo político/ cultural que acabou incentivando vários movimentos em segmentos sociais específicos e acabou também gerando esse novo carnaval na cidade.
Esse vínculo do atual carnaval de Belo Horizonte com essa onda libertária é muito explícito quando observamos suas principais expressões e características: os blocos, as músicas, a liberdade de escolha dos roteiros e principalmente o acolhimento da diversidade humana – negros, brancos, homossexuais, héteros, o protagonismo das mulheres e a gentileza, cordialidade e o comportamento civilizado como parte da festa. Toda a potência, a criatividade e o vigor desse surpreendente carnaval crescem ano a ano.
A alma, o espírito carnavalesco da festa de Belo Horizonte, sua qualidade e suas singularidades são frutos desse movimento cultural e não é coincidência que, sem ninguém planejar, esse movimento tenha desaguado no carnaval. Trata-se da luta de uma geração pelo direito à alegria e ao prazer associada ao protagonismo social. Pelo direito de ser o que se é, sem as amarras da caretice e do preconceito. Todas as demandas e atitudes que caracterizam o século XXI sintetizadas e polarizadas no carnaval. Utopia carnavalesca e cidadania na veia!
Mais lindo não é possível!
Carnaval é sempre assim, no Rio, na Bahia, em Pernambuco, em São Paulo ou onde for: uma mistura de desejo de desconectar da realidade e suas amarras sociais das quais somos vítimas durante todo o ano; momento de alienação e de fuga da dureza da vida, enfim, a adesão a uma alienação voluntária e passageira. No entanto, além da esbórnia, é também momento propício para a crítica social e política; a hora certa para a afirmação cultural e desejo de romper os limites medíocres do cotidiano.
Alienação no melhor sentido da palavra e crítica e protagonismo político, essa é a combinação que só se vê no carnaval.
Daí é que vem a importância do carnaval para o equilíbrio psicossocial da cidade.O tamanho e a importância social, econômica e cultural que o carnaval de Belo Horizonte ganhou, exige, de todos, muita lucidez. O que fazer daqui para frente? Tudo aconteceu muito rapidamente, tudo é muito potente e tudo é muito.
Os desafios e as questões trazidas pelo carnaval precisam ser enfrentadas com o espírito aberto e com a contribuição de todos.
Toco numa questão que vai exigir muita sabedoria e espírito democrático: a rua é pública e o carnaval da capital mineira é parte de um processo de reapropriação dos espaços urbanos pela sociedade – direito à cidade- que esse movimento trouxe para a ordem do dia. O carnaval e as ruas são espaços democráticos e plurais. A praça é do povo, como o céu é do condor, como disse Castro Alves, patrono do carnaval da Bahia. Em última instância é para essa democratização radical do espaço público que deverá avançar o carnaval. E assim será: segmentos que nunca se pensaram na folia certamente virão para as ruas experimentar a folia momesca. Mais diversidade para a festa nos próximos anos.Não podemos também esquecer que o carnaval produz ou potencializa uma economia poderosa, o que acaba atraindo empreendedores e empresas de todo tipo e muitas possibilidades de negócios surgem. Não vejo isso como um problema. Ao contrário. A economia criativa ou cultural é a economia emergente neste início de século e o potencial do carnaval de gerar riquezas para a cidade é enorme.
O que deve ser evitado é a apropriação da festa por alguns, como acabou acontecendo em outros carnavais de outros lugares, ou reduzir a festa à sua dimensão econômica, como se toda essa loucura carnavalesca fosse somente um grande mercado. Essa usura acaba matando a galinha dos ovos de ouro. Ou deixando-a grogue, como em outros lugares que não soube proteger a festa. No capitalismo, não é possível reunir tanta gente e com essa carga simbólica poderosa na sociedade sem criar mercados. E isso não é ruim em princípio. É da natureza da sociedade.
E a dimensão econômica não precisa brigar como a dimensão cultural, com a alma da festa. Mas se deixar sem regulação, a usura devora tudo que vê pela frente… Ninguém é dono do carnaval. Nem mesmo a prefeitura. A prefeitura presta serviços para que a festa aconteça da melhor maneira possível, regula e garante o ambiente de paz e liberdade e conforto.
Os que pensam o carnaval política e culturalmente, que inventaram essa festa que está aí na rua terão que compreender essa contradição; o carnaval não é de ninguém mas é de todos e não podem achar que são uma espécie de donos do evento. Podem e devem continuar dando o tom e garantindo o espírito de liberdade e civilidade.Aí é o campo da criatividade, inteligência e capacidade de pensar a festa na sua grandeza. A atual administração municipal vem manifestando que compreende bem a natureza da festa e o seu papel regulador, prestador de serviços e garantidor da segurança, da paz e da harmonia. Chega de papo! Bom carnaval para todos os foliões e para os que estarão trabalhando na limpeza, na segurança, na mobilidade, nos serviços de saúde e todos os outros. E, viva o carnaval de Belo Horizonte! No mais, é como diz a música: respeite as minas, as manas e também as monas!
Juca Ferreira é Secretário de Cultura de Belo Horizonte e ex-ministro da Cultura