Miséria de Ferro
Por Flávio de Castro
O dono reclamou para o cliente que levaram todos os refletores e até a câmera de segurança da loja. Furtaram também um andaime do prédio em reformas no bairro. Parece que o nóia saiu correndo com um andaime nas costas às duas da manhã, ouvindo gritos das janelas e mais vozes dentro da cabeça.
O bairro amanhece com as lixeiras reviradas. O que resta é papel e tipos inúteis de plástico. Tudo o que é ferro, cobre, metal e alumínio pode ser vendido por uma multidão de dependentes químicos, que arrastam correntes rumo aos ferros-velhos clandestinos que compram os escombros da cidade violada.
Todo mundo sabe, todo mundo ouve e vê . Da minha janela vejo uma pequena mulher negra lutando sozinha contra o vento no vão da escadaria. Seu isqueiro Bic é um vagalume triste que arde até se apagar de vez. Sem escolha, sem acaso. Não oscila, não cessa, não voa. Quando fecho as persianas vejo que ela está procurando meteoritos caídos nas frestas dos degraus.
O minério de ferro se transforma em artefato para ser furtado, vendido e trocado por pedra. E no alto das montanhas de minério de ferro as pedras evaporam, e os garimpeiros voltam ao garimpo de maçanetas, torneiras, fiação e tampas de bueiro arrancadas e arrastadas até o alto do morro por Sísifos insones. Garimpeiros urbanos que a cidade só vê quando lhe quebram o vidro do carro ou levam as lâmpadas do jardim.
É o novo ciclo da mineração. Ferros-velhos impulsionam uma microeconomia voraz e letal que abastece o vício, que abastece o tráfico, que abastece a polícia, que abastece o helicóptero, que abastece a fazenda, que abastece o senador.
O homem compra ferro para se proteger do furto e o ferro é furtado, gerando mais ferro – e mais pedra. O homem caga e o caranguejo come a merda do homem, que come o caranguejo. Josué de Castro escreveu em sua Geografia da Fome o ciclo da miséria que todo mundo sabe, todo mundo ouve e vê . O ciclo da Miséria de Ferro, dos alpinistas descalços do Morro do Papagaio, rutilando nos faróis da Avenida Nossa Senhora do Carmo.
E a roda da lua gira enquanto tentamos dormir sob os ruídos dos Sísifos que a sociedade quer internar, encarcerar, triturar, moer. O som de ferro, de vidros, gritos e sirenes. O som dos furtos, dos delírios e dos solilóquios raivosos. O som da avenida que separa o pobre do rico.
E os nóias, cujos nomes não sabemos, cujas hístórias não conhecemos e sequer os concebemos sujeitos e cidadãos. Apenas apedrejamos, verbalmente, violentamente, mineralmente, quimicamente. Jogamos pedras dé ódio que se transformam em vagalumes que morrem. Vagalumes que ardem carregando nas asas seus andaimes, tampas de bueiro e outras cruzes roubadas para o fundo do alto do morro, bem acima dos prédios de três andares que mesmo com vinho chileno e alprazolam não conseguem dormir em paz.
Conto-reportagem
Flávio de Castro
Poeta, professor de literatura e funcionário público de si mesmo.