História e opressão em dois romances brasileiros


Por André Nigri

Entre os inumeráveis riscos a que está sujeito um autor quando se coloca a escrever uma obra de ficção tendo a história como pano de fundo ou como co-protagonista de sua narrativa, o mais perigoso é o de pretender alcançar os leitores com a veracidade dos fatos. Infelizmente as estantes continuam apertadas de títulos com essa pretensão e os resultados são, com as exceções de praxe, pífios, frágeis e inúteis, pois cabe aos historiadores, acadêmicos ou não, o arrogo de relatar “o que aconteceu”. A saída de muitos desses escritores é romancear personagens e episódios. Felizmente o tempo, e as traças, se encarrega de esquecê-los.

Se a pretensão, por outro lado, for a de examinar o homem confrotado com a força esmagadora da história, o risco não apenas é reduzido como o resultado alcançado algumas vezes é surpreendente. Assim lemos Guerra e Paz não para estudar as táticas de Napoleão e do general Kutúzov, mas pelo assombro com que Tolstói revela o espírito de Pierre ou de Andrei.

É assim também que dois romances de autores brasileiros publicados nos últimos anos – com um espaço de cinco anos entre eles – devem ser lidos.

O surgimento da ficção de Bernardo Kucinski e de Julián Fuks é mais do que uma boa notícia para a nossa menosprezada literatura; ambos se apresentam como territórios ainda pouco explorados. Não à toa, o caminho que percorrem se parece antes a uma busca do que o um caminhar por terreno conhecido.

Bernardo Kucinski surgiu como escritor de ficção em 2011 ao publicar por uma pequena editora o romance ‘K. Relato de uma Busca’. O autor tinha então 74 anos e uma longa trajetória de atividades como jornalista, correspondente internacional e militância política alinhada à esquerda. Quando depôs as armas de seu ofício, resolveu escrever sobre o desaparecimento de sua irmã nos anos 70 nas garras da ditadura militar brasileira. Como um jornalista veterano, é possível imaginar que tivesse sido tentado a contar a história como uma grande reportagem. Mas graças a um talvez incospícuo talento imaginativo escreveu uma vigorosa peça de ficção.

Acompanhamos a procura de K., um imigrante judeu polonês dono de uma loja no Bom Retiro em São Paulo, pela filha, uma militante política professora de química na USP, desaparecida com o marido nos porões do regime. Por meio da penosa e absurda travessia do protagonista (o K. do título é uma dupla homenagem ao nome do autor e dos esmagados heróis de Kafka) Kucinski mergulha na perplexidade de um Estado que não somente se compraz a eliminar os outros como a apagá-los da história.

O dorso do livro é essa odisseia infausta. K. não se limita a procurar as autoridades governamentais, já que logo percebe a inutilidade desse apelo. Busca informantes inescrupulosos, recorre a lideranças judaicas até nos Estados Unidos, à igreja católica, a qualquer pista capaz de conduzi-lo à filha, não porque nutra esperança de encontrá-la viva, mas para enterrá-la e saber as circunstâncias de sua morte.

Kucinski se valeu de outros recursos atados a esse dorso: relatórios e principamente depoimentos. É quando o romance desliza um pouco. O argot do abjeto delegado Fleury, por exemplo, soa como uma barra forçada, assim como o de sua amante. Contundente, por outro lado, é a cena na qual uma ex-empregada do infame centro de torturas e mortes conhecido como Casa da Morte, na região serrana do Rio, conta a uma médica do INSS sobre os horrores de que foi testemunha.

O epílogo do romance, o anexo com dois capítulos, é de grande força, pois desmascara a suposta oinisciência do narrador. Resta a culpa do pai, seu doloroso autoflagelo, descrita assim: “A culpa. Sempre a culpa. A culpa de não ter percebido o medo em certo olhar. De ter agido de uma forma e não de outra. De não ter feito mais. A culpa de ter herdado sozinho os parcos bens do espólio dos pais, de ter ficado com os livros que eram do outro. De ter recebido a miserável indenização do Governo, mesmo sem a ter pedido. No fundo a culpa de ter sobrevivido.”

Julián Fuks

Essa culpa de ter sobrevivido recai também sobre o autor-narrador de A Resitência. Mas a linha escolhia pelo jovem Julián Fuks, nascido em 1981, é completamente diversa. O clima de seu romance é claustrofóbico e o próprio ato de escrevê-lo invoca o travo sugerido pelo título. O narrador busca as origens do irmão, entregue à adoção após vir à luz nas trevas da sangrenta ditadura argentina instaurada em 1976. Estima-se em mais de quinhentos o número de recém-nascidos retirados de suas mães naquelas circunstâncias.

Sebastián nasceu três anos depois de seu irmão. Em seguida veio uma irmã. A família viu-se forçada a deixar a Argentina. Aporta no Brasil, em São Paulo. Os pais são psiquiatras, envolvidos na implantação do movimento antimanicomial e contra o regime estabelecido pela junta militar. Aos poucos, alguns estilhaços são ajuntados, mas não a ponto do esclarecimento. Sebastián vaga como um sonâmbulo por sua história familiar e a história do seu país, cujas fronteiras são habilmente misturadas pelo autor, as ruas de Buenos Aires perdem sua geometria e nada, a não ser o fracasso, socorre o perseguidor.

Fúks escreve: “Sei que escrevo meu fracasso. Não sei bem o que escrevo. Vacilo entre um apego incompreensível à realidade – ou aos esparsos despojos de mundo que costumamos chamar de realidade – e uma inexorável disposição de fabular, um truque alternativo, a vontade de forjar sentidos que a vida se recusa a dar.” Esse belo trecho pode servir como chave do texto, chave de cuja porta jamais irá se abrir, mas que o autor, como todos nós em nossas buscas, não desiste de bater. “O que caberia dizer afinal?”, pergunta-se o narrador. Essa pergunta, muito mais sábia do que qualquer resposta, paira como uma lanterna largada ao mar durante um nevoeiro.

Aos que hoje flertam e atiram piscadelas à instauração de uma intervenção militar no Brasil, esses dois romances deveriam servir como faróis, pois se para alguns a liberdade é um substantivo inane, para o homem digno de seu nome sem ela a vida é desprovida de substância, é um nada, menos do que nada.

K. Relato de uma Busca de Bernardo Kucinski, Companhia das Letras

A Resistência de Julián Fuks, Companhia das Letras

Literatura

André Nigri

Jornalista, crítico literário e leitor compulsivo.