“Garganta” nasceu numa roda de bar

Entrevista com o editor Sergio Cohn, que retoma a tradição dos vinis de poesia


Por Ana Paula Orlandi

Foto: Bernardo Pauleira -Divulgação

Em 2014, após participar de uma edição do projeto de poesia falada “Noite Beat”, no teatro Cemitério dos Automóveis, em São Paulo, o editor Sergio Cohn foi tomar cerveja e bater papo com dois amigos poetas, Fabiano Calixto e Marcelo Montenegro. “Na conversa comentamos como era legal dizer poesia e, por sermos apaixonados pelo vinil, não demorou para surgir ali mesmo a ideia de gravar um disco com poetas”, lembra Cohn, paulista radicado no Rio e à frente da editora Azougue. “É, aliás, um tipo de disco que faz parte da minha memória afetiva: meus pais tinham LPs com Vinicius, Drummond, Bandeira, entre outros poetas, falando a própria obra e que ouvi muito na infância”.

Lançado no ano passado pela Azougue e Embolacha, “Garganta” reúne 20 poetas contemporâneos brasileiros, a exemplo de Ana Martins Marques, Fabrício Corsaletti, Domingos Guimaraens, Gregório Duvivier e Angélica Freitas, dizendo os próprios versos, entre inéditos e já publicados. O disco, que vem acompanhado de um livro, segue uma parca tradição fonográfica no Brasil que remonta provavelmente ao final dos anos 1940, quando a gravadora Continental produziu discos com os poetas Manuel Bandeira e Olegário Mariano. Uma ideia, por sinal, que ganhou musculatura graças a iniciativas como a do Selo Festa, que entre 1955 e 1971 colocou no mercado cerca de 67 discos de poesia, parte deles falado por gente como João Cabral de Melo Neto, Cecilia Meireles e Carlos Drummond de Andrade.

A seguir, Cohn conta como foi fazer o “Garganta”, que foi apresentado ao vivo em abril passado, no Sesc Palladium, em Belo Horizonte, dentro do projeto “Digas! Poesia Falada” (veja box). O show literário, com 17 autores no palco, atraiu um público de 250 pessoas. “Vi muitos jovens na plateia”, diz o poeta e editor. “A poesia virou um gênero importante para a juventude de hoje”.

Divulgação UFPI

Como você conseguiu viabilizar a ideia de gravar um disco de poesia?

Em 2015, escrevi o projeto do “Garganta” com um amigo poeta, Vitor Paiva, que é da Embolacha (plataforma de financiamento coletivo especializada em projetos culturais). A meta era arrecadar R$ 15 mil por meio de uma vaquinha virtual para viabilizar a parte técnica, mas em dois meses levantamos R$ 18.500. Um ótimo resultado, que mostra a força da poesia hoje e espero que estimule a criação de outros projetos de financiamento coletivo nesta área. A princípio os poetas nos enviariam as gravações, mas com essa grana extra conseguimos pagar as passagens aéreas para reunir 18 deles em um estúdio no Rio de Janeiro. Tudo foi gravado em um dia. Infelizmente, não conseguimos bancar financeiramente a vinda de Thiago E., que vive em Teresina (PI). Já Omar Salomão, que mora no Rio, não pôde participar do encontro por conta de outro compromisso – ele iria participar no mesmo dia de um show de Jards Macalé em São Paulo. Mas a oportunidade de juntar presencialmente os poetas mudou o disco, porque durante o encontro houve muita troca de ideia. Um deles falava um poema, outro lembrava de um poema que tinha a ver com aquele, e assim o LP ganhou uma unidade que não teria se fosse feito à distância. Agora, no final, eu precisei tirar dinheiro do bolso porque no orçamento, por inexperiência, a gente não previu alguns custos, como a verba para a masterização do disco, além de termos subestimado o altíssimo preço de envio pelo correio (risos).

Qual foi o critério de seleção dos poetas?

A gente fez um recorte inicial: 20 poetas, nascidos a partir de 1970, e cada um deles teria dois minutos de fala, tempo suficiente para preencher um LP. No início, a seleção estava mais equilibrada, com 10 poetas de cinco cidades: Pelotas (RS), Teresina, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. Mas confesso que no fim a rede de afetos pesou e o disco acabou ficando com um sotaque carioca. Ou seja, dentre 20 poetas, 12 deles são do Rio de Janeiro, que é a cidade onde vivo. Não por acaso costumo dizer que o critério de seleção foi afetivo. Vale dizer também que o disco homenageia dois poetas cariocas. O lado A, mais político, é batizado de “Ericson Hotel”, em memória de Ericson Pires (1971-2012), grande influência para os poetas da geração 2000 do Rio. Já o lado B, “Cabaré Zarvoleta”, que tem uma pegada mais irreverente e romântica, lembra Guilherme Zarvos, que criou em 1990, também no Rio, com o (poeta) Chacal, o CEP 20.000, um dos mais longevos encontros de poesia falada e de outras manifestações artísticas do Brasil.

Há público para esse tipo de disco no Brasil?

Essa é uma questão em aberto que a gente vai descobrir com o tempo. O que sei é que o projeto chamou atenção nas redes sociais, principalmente dos jovens. Com a grana levantada produzimos 200 LPs, sendo que 120 deles foram destinados a quem colaborou no crownfunding. De qualquer forma, penso em fazer outros discos do gênero. Meu sonho é criar um esquema de assinatura, onde o interessado possa receber LPs de poesia ao longo do ano em casa. Outro plano, esse mais concreto, é produzir um documentário a partir de depoimentos dos poetas, das imagens que gravamos em estúdio e também durante a apresentação em Belo Horizonte, que foi incrível e reuniu cerca de 300 pessoas na plateia, a maioria delas na faixa dos 20 anos de idade. A poesia virou um gênero importante para a juventude de hoje. Nas manifestações de 2013, por exemplo, não ouvi música, mas vi muitos cartazes com trechos de poemas. Nessa mesma época, aliás, foi lançada a antologia do Paulo Leminski (“Toda poesia”, Companhia das Letras, 2013), que bombou com seus versos parecidos com um tweet.

Você acha que a poesia perdeu espaço no Brasil das últimas décadas?

Sim! Entre as décadas de 1920 e 1970, os poetas ocupavam um papel central em nossa cultura, eram eles que estavam pensando o mundo, tinham grande intervenção pública e cultural. Não faltam exemplos: podemos falar de modernistas como Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade; de concretistas como os irmãos Augusto e Haroldo de Campos e neoconcretistas como Ferreira Gullar; do tropicalista Torquato Neto; dos marginais como Waly Salomão e o próprio Chacal. Entretanto, a partir da segunda metade da década de 1980, a poesia brasileira fica metalinguística, passa a olhar para o próprio umbigo, se distancia do público e perde espaço. Mas acho que agora ela está reconquistando seu lugar.

Qual é a importância de gravar poesia?

A fala é um veículo importante para a difusão da poesia e uma ótima estratégia para atingir o público jovem. Digo isso a partir de uma experiência pessoal: eventos de poesia falada como o CEP 20.000 abriram muitos horizontes para mim. Ali conheci o trabalho de poetas incríveis, como o do próprio Ericson Pires. Agora, gravar poesia também é um documento. Quando esse registro é feito na voz do próprio poeta, fica mais fácil entender como ele pensou aquele poema, entender os ritmos, as quebras. No Brasil, desde João Cabral e o concretismo há uma, digamos, operação de limpeza do texto poético. O resultado é que hoje é raro ver poemas com marcações de intensidade, como a exclamação, por exemplo, e assim ficamos sem saber a entonação pretendida pelo poeta.

O “Garganta” é influenciado pelos discos de poesia do passado, como aqueles produzidos pelo Selo Festa?

Somos influenciados pela atitude do Selo Festa, que lançou vários discos de poesia. Aliás, é impressionante que tenha existido uma gravadora assim no Brasil. Mas a fala dos poetas do Selo Festa era mais formal e nesse sentido o “Garganta” tem mais a ver com a poesia marginal, onde a fala e a performance dos autores era pautada pela irreverência.

Serviço

Garganta” está à venda no site da Azougue (www.azougue.com.br)

Poesia falada em BH

Desde agosto de 2011, o Sesc Palladium realiza o projeto “Digas! Poesia Falada”. “Não se tratam de recitais”, avisa a curadora Lídia Mendes. “A ideia é oferecer a cada edição maneiras de envolver o público e apresentar a poesia de um jeito informal e acessível”. Com periodicidade mensal, a iniciativa acontece de março a novembro, sempre com entrada franca. Por lá já aconteceram apresentações inéditas de poetas como Cid Campos, Ricardo Aleixo, Péricles Cavalcanti, Karina Buhr, Arnaldo Antunes, Lirinha e Ana Elisa Ribeiro. “Mas nossa maior ousadia foi promover o espetáculo ‘Garganta ao vivo’, com 17 poetas no palco”, diz Lídia para emendar: “A fala do poeta diz muito sobre o poema que está sendo lido, mas alguns poetas são mais para serem lidos do que ouvidos, enquanto alguns poemas se transformam graças à performance do poeta”.