É pela vida das mulheres

O dilema do aborto deixou de ser uma conversa de religião ou costumes para se tornar uma questão de saúde.


Por Daniela Mata Machado

A decisão da primeira turma do STF (Superior Tribunal Federal), tomada no dia 29 de novembro, deflagrou novo round no embate entre os que defendem a criminalização do aborto e os que acreditam que essa é uma decisão da mulher sobre o seu corpo. No julgamento do habeas corpus de pessoas que trabalhavam numa clínica clandestina em Duque de Caxias (RJ), os cinco ministros dessa turma decidiram pelo deferimento do pedido, alegando que a prática de aborto no primeiro trimestre da gestação não é crime.

Dias depois, a divulgação do resultado da Pesquisa Nacional do Aborto 2016, realizada pela Ong ANIS – Instituto de Bioética, em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), revelaria a dimensão da frequência do procedimento no Brasil. De acordo com o estudo, uma a cada cinco mulheres terá feito um aborto antes de completar 40 anos. Isso significa que, dificilmente, as pessoas que viralizaram hashtags como #AbortoNao ou #MeuÚteroÉUmBerçoNãoUmCemitério não terão pelo menos uma amiga, irmã, tia ou vizinha que já tenha provocado a interrupção da gravidez.

Rio de Janeiro – Mulheres em passeata defendem legalização do aborto e protestam contra CPI que tramita na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Fernando Frazão/Agência Brasil)

“Criminalizar não diminui o número de abortos”, diz a ginecologista e obstetra Melânia Amorim, mestre em Saúde Materno Infantil pelo Instituto Materno Infantil de Pernambuco (Imip), doutora em Tocoginecologia pela Unicamp e pós-doutora pela Organização Mundial de Saúde, em Genebra. A médica vê a questão do aborto ilegal como um grave problema de saúde pública no Brasil. “O aborto é a quinta causa de morte materna no País”, afirma.

A Pesquisa Nacional do Aborto revela que a cada minuto uma mulher aborta no Brasil. Como o procedimento é ilegal, acabam recorrendo a métodos diversos e, muitas vezes, pouco ortodoxos para interromper gestações indesejadas. “As mulheres ricas conseguem remédios ou vão a clínicas ilegais, mas bem aparelhadas”, explica Melânia Amorim. “As pobres recorrem a coisas perigosas, como a injeção de soluções cáusticas no útero, que gera complicações gravíssimas e pode levar à morte.”

A médica afirma que, se legalizado, o aborto pode ser realizado em condições bastante seguras. “Numa gestação com menos de 12 semanas, apenas o Misoprostol – remédio de uso restrito a hospitais e utilizado para os casos de abortamento legal no Brasil – garante a eficácia do procedimento em 90% dos casos”, explica. Seu uso pode ser conjugado com a aspiração a vácuo. A curetagem geralmente só é necessária para o procedimento de aborto em gestações com mais de 12 semanas.

Na ilegalidade, no entanto, os métodos utilizados pelas quase 5 milhões de mulheres que já abortaram no Brasil são bem mais variados. E muito mais perigosos. “Há mulheres que ainda abortam utilizando agulhas de crochê”, conta Melânia. “Ou procuram curiosos, que geralmente são pessoas que já trabalharam na área da saúde e, por isso, têm alguns instrumentos, como é o caso de quem usa a tesourinha”, diz.

FETO NO VIDRINHO

Fernanda*, de 43 anos, tinha 20 quando se submeteu a um procedimento assim. “Eu namorava e me prevenia fazendo a tabelinha. Quando a menstruação atrasou, descobri que estava grávida e não sabia o que fazer”, recorda. “Eu nunca me vi mãe.” Uma colega da faculdade disse a Fernanda que havia um homem que poderia fazer o aborto, mas ela não tinha o dinheiro. “Levei um mês e 10 dias para levantar tudo o que podia com meu namorado e minhas amigas. Tinha que ser tudo em dinheiro vivo. Fiquei devendo às minhas amigas durante três anos”, lembra. Antes de conseguir o valor necessário, a moça tomou todo tipo de chá e garrafada que as amigas lhe recomendaram.

“No dia fui acompanhada pelo meu namorado e uma amiga. A sala ficava num prédio. O homem que ia fazer o aborto parecia ter uns 60 anos e tinha cara de médico. Era só ele e mais ninguém. O lugar era limpinho e organizado e eu não perguntei nada”, conta. “Ele colocou em mim aquele aparelho de ferro que usam para abrir a vagina em exames ginecológicos e até hoje eu tenho pavor daquilo.” Fernanda recorda que o homem lhe aplicou um spray para diminuir a dor e foi raspando o útero e retirando as partes do feto com a tesourinha. “Ele ia batendo aquela colherinha. Até hoje eu tenho aflição do barulho da colherinha batendo na xícara.”

Ela conta que berrava de dor. “Meu namorado, do lado de fora, batia na porta porque ouvia os meus gritos. A porta estava trancada e o médico não esboçava nenhuma reação. Parece que ele estava só limpando uma coisa.” Terminado o procedimento, Fernanda se lembra de que o aborteiro queria que ela fosse logo embora, mas ela mal conseguia andar. Mesmo assim, saiu de lá caminhando. “Antes que eu fosse embora, ele me deu um vidrinho com os restos do feto. Joguei aquilo fora sem nem olhar onde caiu.”

Fernanda nunca se arrependeu de ter feito o aborto ou acreditou que não devesse ter realizado aquele procedimento. “O que me pegou não foi a culpa e sim o fato de eu não ter a opção de fazer aquilo de um jeito decente.”

Nove anos mais tarde, uma segunda gestação faria com que ela se sentisse culpada. “Quando engravidei novamente, eu senti culpa por ter vacilado”, conta. Mas dessa vez ela diz que a experiência com o aborto foi menos traumática. “Eu conversei com uma médica, de quem havia ficado amiga, e ela me explicou como eu poderia usar o Citotec”, lembra. O remédio, utilizado para abortamento, é proibido no Brasil e adquirido por meio de contrabando, muitas vezes realizado através de Ongs internacionais.

Rio de Janeiro – Mulheres defendem legalização do aborto e protestam contra CPI na escadaria da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Fernando Frazão/Agência Brasil)

“Essa médica me explicou que, depois de algumas horas, eu deveria procurar o serviço público de saúde e dizer que estava sofrendo um aborto espontâneo. Falou que eu não poderia falar que tinha provocado porque o médico seria obrigado a me denunciar à polícia.” Fernanda tomou os remédios, aguardou algumas horas e, já com hemorragia, foi para um hospital público. “Eu disse que estava sofrendo um aborto e fui muito bem atendida. Me senti uma paciente, não uma criminosa”, recorda. “Quando fui embora, olhei para a médica e tive a impressão de que ela sabia o que eu tinha feito. Mas ela me abraçou e disse: ‘Fique bem’.”

Fernanda fala do abraço dessa médica com uma voz meio emocionada e diz que isso fez muita diferença pra ela. “Só queremos que as mulheres não sejam presas por isso.”

SIGILO

Diferentemente do que Fernanda acreditava, a ginecologista Melânia Amorim garante que os médicos não estão obrigados a denunciar suas pacientes à polícia. “Um médico não deve perguntar à paciente se ela provocou o aborto, inclusive porque isso aumenta o trauma daquelas que estão sofrendo com um aborto espontâneo”, explica. “Os profissionais devem manter o sigilo.” A médica afirma, no entanto, que muitos profissionais insistem em fazer perguntas. “Isso é violência obstétrica”, diz.

PRECEDENTE FAVORÁVEL

A decisão tomada pela primeira turma do STF, no final do mês passado, dá um passo inédito para a descriminalização do aborto no Brasil, mas não tem força de lei. Ela só teria efeito vinculante – ou seja, deveria ser acatada por todos os juízes de todas as comarcas brasileiras, anulando os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto no País – se fosse uma decisão tomada pelo Pleno, constituído pelos 11 ministros. Como se trata de uma sentença proferida por apenas uma turma, formada por cinco desses 11 ministros, o que se tem é um precedente favorável à descriminalização, que poderá ser utilizado por juízes que entendem da mesma forma no julgamento de casos semelhantes, mas não obrigará magistrados que têm interpretação divergente.

“A proibição do aborto é expressa no Código Penal”, explica a professora-doutora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) Janaína Penalva, que é mestre em Direito e Bioética pela Universidade de Barcelona, na Espanha, e membro da Coordenação do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação da Faculdade de Direito da UnB. “E ela penaliza tanto a mulher quanto os profissionais que realizam o aborto”.

O Código Penal Brasileiro é de 1984, anterior, portanto, à promulgação da Constituição Federal de 1988. Na terça-feira, 29 de novembro, durante o julgamento de habeas corpus dos cinco profissionais que trabalhavam na clínica clandestina de Duque de Caxias (RJ), o ministro Luís Roberto Barroso manifestou, em seu voto, o entendimento de que a criminalização do aborto realizado no primeiro trimestre da gestação, pelo Código Penal, não teria sido recepcionada pela Constituição, uma vez que viola direitos fundamentais da mulher. Outros dois ministros, Rosa Weber e Edson Fachin, concordaram com ele. O relator, Marco Aurélio, e o ministro Luiz Fux não se manifestaram sobre a descriminalização.

“Essa foi, sem dúvida, uma decisão muito importante”, afirma Janaína Penalva. Ela ressalta, entretanto, que a única garantia que essa decisão confere é a de que aqueles cinco julgados pelo crime de aborto terão a sua prisão preventiva revogada. “A decisão poderá ser usada como precedente por outros juízes e as pessoas acusadas do crime de aborto terão uma chance maior de absolvição, desde que o juiz tenha o mesmo entendimento daquela Primeira Turma do STF”, explica.

Se a decisão da Primeira Turma do STF gerou revolta em setores conservadores, que se manifestaram de forma contundente nas redes sociais, ela foi recebida com entusiasmo entre os que lutam pela descriminalização do aborto. A professora de Direito Laís Lopes, da Universidade Federal de Lavras (UFLA), acredita que, mesmo sem efeito vinculante e referindo-se ao julgamento de um caso específico, o voto do ministro do Barroso, ratificado pela turma, é um precedente importante.

RETROCESSO

Logo após a divulgação da decisão da Primeira Turma do STF, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou a criação de uma comissão especial para debater o aborto no País. Seu objetivo é discutir a Proposta de Emenda Constitucional 58/2011, que trata da licença-maternidade no caso de bebês prematuros, mas a intenção é incluir a questão do aborto de modo a tornar mais rígida a legislação sobre interrupção da gravidez. Na internet, já é possível encontrar abaixo-assinados solicitando que a Câmara dos Deputados anule a decisão do STF.

“Entendo que esse tipo de petição não tem nenhum efeito, uma vez que o STF é a instância superior do Poder Judiciário e uma interferência do Legislativo iria ferir o princípio da independência entre os três poderes”, afirma a professora Laís Lopes. Ela teme, no entanto, que o retrocesso ocorra por meio da aprovação de outros projetos de lei, que seguem tramitando, como é o caso, entre outros, do Estatuto do Nascituro e de um projeto apoiado pelas bancadas religiosas do Congresso Nacional conhecido como Bolsa Estupro, que prevê a proibição do aborto de mulheres estupradas e o acompanhamento psicológico a vítimas. Na hipótese de a mãe não dispor de condições econômicas suficientes para saúde e educação da criança, o projeto de lei prevê que “o Estado arcará com os custos respectivos” até que venha a ser identificado o pai (autor do estupro) ou o bebê seja adotado.

A jurista Janaína Penalva também teme retrocessos e afirma que se corre o risco de perder até as exceções que já constam na legislação. Atualmente, o Código Penal admite o aborto legal em casos de estupro e risco de vida materno. Desde 2012, por decisão do STF, admite-se também o aborto de fetos anencéfalos. A ginecologista Melânia Amorim pontua, entretanto, que muitas mulheres vítimas de estupro ou gestantes de fetos anencéfalos sequer sabem que têm direito ao aborto. “Esses serviços são subutilizados. Dos 68 existentes, apenas 37 funcionam no País”, informa. Ela também explica que alguns médicos ainda acreditam que é preciso apresentar um alvará judicial para a realização do procedimento, quando não é necessário nada disso.

Rio de Janeiro – Mulheres em passeata defendem legalização do aborto e protestam contra CPI que tramita na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Fernando Frazão/Agência Brasil)

MINHA AVÓ ABORTOU

A Pesquisa Nacional do Aborto revela que a mulher que interrompe a gravidez no Brasil muitas vezes é casada, religiosa e tem outros filhos. Cláudia*, de 58 anos, que durante a juventude realizou três abortos, conta que a avó dela fez um aborto introduzindo na vagina um cabo de guarda-chuva. Essa senhora era casada, tinha outros filhos e não sabia como ia sustentar mais um. “Minha avó tinha muito medo de morrer porque tinha certeza de que iria para o inferno. Eu acho que era por causa disso”, ela conta.

A experiência de Cláudia desconstrói também o argumento de que as pessoas que se previnem não engravidam. Das três gestações que ela interrompeu, apenas uma foi decorrente de relação sexual sem contraceptivos. “Em uma das vezes, eu estava tomando pílula e na outra o preservativo se rompeu”, conta. “Eu tive sorte nos meus abortos porque nunca tive nem infecção, mas uma amiga quase morreu durante o procedimento”, lembra.

Os três abortos de Cláudia foram realizados entre os 19 e os 25 anos. Aos 31, ela engravidou de novo e resolveu ter o bebê, sozinha e contra a vontade do pai da criança. “Ninguém faz um aborto porque quer. Tem o desgaste, a culpa e o medo de que as pessoas que você não quer que saibam acabem descobrindo”, diz. “Se houvesse apoio psicológico, ou até a adoção fosse mais fácil, talvez menos gente abortasse. Eu acho que legalizar o aborto ajuda a tirá-lo da sombra e mostrar que ele existe”, opina. “Eu não sou a favor do aborto. Acho que é o último recurso. Mas eu fiz três. Quatro, já que a primeira gestação era de gêmeos. Acho que a mulher tem que ter a possibilidade de escolher.”

 

ABORTO LEGAL

Lara* é brasileira, tem 20 anos, e mora nos Estados Unidos, em um estado onde o aborto é legalizado. Em janeiro deste ano, ela descobriu que estava grávida e decidiu interromper a gestação. “O procedimento durou cinco minutos e eu não senti nada”, conta.

A brasileira descobriu a gravidez com 5 semanas de gestação e se dirigiu a um serviço de saúde. “Eu não usava nenhum método anticoncepcional”, fala. “A maior dificuldade foi convencer a minha mãe, que também mora aqui. Ela me teve aos 16 anos e não aceitava o aborto. Depois foi aceitando.”

No próprio hospital onde confirmou sua gravidez, Lara foi orientada sobre o serviço de abortamento. “Me indicaram um ginecologista para fazer o acompanhamento da gestação, caso eu decidisse ter o bebê, ou uma clínica para eu abortar, caso fosse a minha vontade”, explica. Na clínica, deram a Lara as opções de fazer o aborto cirúrgico ou por medicamento. “Escolhi o cirúrgico”, diz. Ela teve o apoio de uma psicóloga antes de realizar o procedimento e foi orientada a ir para a clínica de carro e acompanhada por causa do sangramento que teria depois. “Eu tive anemia”, conta. Dois meses depois, Lara retornou à clínica para um novo exame clínico.

“Acho que fiz a coisa certa”, diz a moça, que é estudante. “Mas se estivesse no Brasil eu não teria feito o aborto porque teria que fazer isso numa clínica clandestina.” Nos Estados Unidos, ela fez o procedimento pago por plano de saúde e conta que, para as pessoas que não têm condições financeiras, existem organizações não-governamentais que subsidiam o aborto. Sua única preocupação, neste momento, é se proteger de todas as maneiras para não voltar a engravidar.

 

MEDO DE MORRER

Beatriz* tem 40 anos. Aos 24, ela teve medo de morrer. Ao descobrir que estava grávida de um namorado recente, ainda estudante universitária e ganhando muito pouco para sustentar um bebê, conta que não teve dúvidas de que precisava abortar. “Mas eu não sabia onde havia uma clínica. Tinha uma na minha cidade, mas eu não confiava. Acabei arrumando o contato de uma no Rio, na Baixada Fluminense”, lembra.

“Eu já havia acompanhado algumas amigas, mas aquele lugar para onde eu fui era bem diferente das clínicas onde eu conhecia, que pareciam muito mais bem equipadas. As condições ali eram ruins e eu tive dúvidas sobre o atendimento.”

A caminho da clínica, Beatriz conta que tinha medo de morrer. Chegando lá, ela entrou na sala sozinha, foi sedada e se lembra de que, ao acordar, teve apenas uma cólica que não considerou forte. “Minha preocupação era saber se o procedimento tinha sido feito, se eles haviam mesmo realizado a curetagem”, diz. Depois do aborto, seu maior medo era precisar de atendimento médico em um hospital. Como o aborto no Brasil é crime, Beatriz temia ser presa.

“O aborto precisa ser descriminalizado porque a mulher tem que ter o direito de decidir sobre o corpo dela. É abusivo o Estado ter esse controle sobre o corpo da mulher”, opina.

 

EXPERIÊNCIA TRAUMÁTICA

Aos 16 anos, Denise* estava de malas prontas pra sair de casa e viver com o namorado e alguns amigos. Adolescente, mesmo tomando pílula e fazendo tabelinha, ela descobriu que tinha engravidado. “Eu não tinha a menor condição de ter filho”, recorda hoje, aos 58. “O problema é que ninguém sabia direito como fazia para abortar. Tinha uma história de uma clínica em Botafogo, mas eu teria que ir pro Rio e não tinha condição para isso.”

Foi quando ela ficou sabendo de uma mulher que fazia o procedimento no Centro de Belo Horizonte. “Eu me lembro que foi muito traumatizante. Ela tinha um ajudante e mostrava aquilo (o feto) pra gente”, recorda. “Não tinha nenhum tipo de anestesia e a gente ia embora pra casa batendo a cabeça de tanta dor.” Denise teve que ir para um hospital depois e alegou aborto espontâneo.

“Tive que fazer um tratamento longo e três ou quatro ginecologistas me disseram que eu não poderia mais ter filhos. Tomei pílula por um tempo, mas depois de tanto afirmarem que eu não poderia mesmo engravidar, parei de tomar”, conta. Foi então que, cinco ou seis anos após o primeiro aborto, ela descobriu que estava grávida novamente. “Cheguei a pensar em ter o bebê, mas quando contei ao meu namorado ele teve a pior reação possível. Nós estávamos nos separando e ele falou como se eu tivesse arrumado aquela gravidez para continuarmos juntos”, lembra.

Denise teve medo de passar novamente por aquela experiência traumática do primeiro aborto. O pai dela descobriu a gravidez e disse que criaria o bebê. “Ele não tinha criado nem os filhos dele e agora dizia que ia criar o meu. Aquela conversa foi decisiva para que eu optasse pelo aborto.”

Assim que ela decidiu interromper a gravidez – desta vez numa clínica em São Paulo –, o namorado de Denise lhe disse para que fosse na frente e que iria encontrá-la. Ela viajou com a irmã, que a acompanhou na clínica. “Dessa vez, teve anestesia e o aborto foi feito por sucção.” O namorado nunca mais apareceu.

Depois do segundo procedimento, Denise começou a pensar em filho. Aos 54, adotou duas crianças. “O aborto existe. As pessoas fazem. Não tem sentido que ainda sejam criminalizadas por isso”, afirma. “Nenhuma mulher passa por isso impunemente, principalmente porque essa é uma experiência muito solitária.”

ABORTO NA MATERNIDADE

Antônia*, de 37 anos, não decidiu pela interrupção da gravidez. Ela sofreu um aborto espontâneo, numa gestação de 9 semanas e meia. Ainda assim, pediu que seu nome fosse trocado porque não se sente segura quanto ao procedimento a que foi submetida dentro de uma maternidade particular, custeado pelo seu plano de saúde.

“O médico constatou que o feto não tinha mais batimento cardíaco nem atividade cerebral, mas o meu corpo não o expeliu”, conta. “Durante 30 dias, eu ainda me sentia como se continuasse grávida, mas o feto dentro de mim já não tinha vida.”

O médico marcou o procedimento e, internada numa maternidade, ela passou a noite inteira inserindo comprimidos de Citotec na vagina para que seu corpo expelisse o feto. “Achei estranho jeito como me tratavam. Senti-me jogada num canto, sangrando. De vez em quando eu chamava por ajuda, mas não me atendiam”, recorda.

Antônia também se lembra de ter sido colocada numa sala de pós-parto, cheia de grávidas com seus bebês. E, mesmo sem ter provocado o aborto e sofrendo por ter perdido um bebê que gostaria de ter visto nascer, ela ainda se sente incomodada pela sensação de que talvez tenha, involuntariamente, cometido alguma coisa ilegal. Mãe de um menino de 2 anos, ela não esquece aquela primeira gestação. “Eu ainda hoje conto o tempo dele (a idade, se estivesse vivo)”.

 

*Os nomes das mulheres que contam seus relatos de aborto foram todos trocados para preservar suas identidades.