Disciplina do golpe é um sucesso
Por João Gualberto Jr.
O que Mendonça Filho (DEM) intentou quando, institucionalmente, achou por bem ameaçar a oferta da disciplina optativa “O Golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, do professor Luis Felipe Miguel, na graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília? Reagiu de forma destemperada em defesa do impeachment e do governo que integra? Visando à projeção do registro histórico, quis marcar território em favor do lado que seu grupo político assumiu? Tentou fazer marketing à direita de olho em um cargo graúdo na eleição deste ano? Ou tudo isso junto?
Verdade consumada é que, apesar de taxar a disciplina de “normal” e “corriqueira”, o cientista político da UnB tem, agora, um caso de enorme sucesso para ministrar. Sucesso, claro, que o banha pessoalmente também. Já seriam dez as universidades públicas dispostas a oferecer curso de teor similar, entre elas, as federais da Bahia, da Paraíba, do Rio Grande do Sul, de São João del Rei e de Juiz de Fora, além da Unicamp.
O movimento docente permite duas leituras: é resultado de uma rede de solidariedade em reação à tentativa de censura do MEC e é a consumação do esforço em ajudar a fincar na história o registro de que o golpe foi golpe. Já Mendoncinha pode, sim, ter transformado um gato siamês, garboso e ereto, em uma oncinha braba. É molho apimentado para o ano eleitoral, com mais acirramentos e sentimentos de revanchismo represados de parte a parte, um tanto à parte do interesse coletivo.
Ao tomar ciência de que a matéria será oferecida neste semestre, em caráter não obrigatório aos alunos, a só 4 km de distância de seu gabinete, o ministro golpista da Educação acionou o MPF, a AGU, a CGU e o TCU para apurar possível caso de improbidade administrativa cometida pelo professor, pelo Instituto de Ciência Política (Ipol) e a própria universidade. Além de classificar o golpe de golpe logo no título, a ementa elaborada por Miguel coloca associa a gestão Temer a uma agenda de retrocessos em direitos sociais e, portanto, das condições de vida da maioria dos brasileiros.
Mendonça lança a premissa genérica e rasa de acusar de “petista” – o pior dos vitupérios no vocabulário diminuto de tantas das “gentes de bem” – a qualquer cidadão que questionou e segue sem engolir a lisura do processo de impeachment que apeou Dilma Rousseff do Planalto. Miguel, na hipótese do ministro, sem base teórica ou científica, utiliza-se do patrimônio público para fazer proselitismo partidária.
Em resposta pelo Facebook, o idealizador da disciplina sustentou: “tenho razões, que creio muito sólidas, para sustentar que a ruptura ocorrida no Brasil em 2016 se classifica como golpe (…) Não vou, no entanto, justificar escolhas acadêmicas diante de Mendonça Filho ou de seus assessores, que não têm qualificação para fazer tal exigência”. E mais: “a disciplina que estou oferecendo se alinha com valores claros, em favor da liberdade, da democracia e da justiça social, sem por isso abrir mão do rigor científico ou aderir a qualquer tipo de dogmatismo. É assim que se faz a melhor ciência e que a universidade pode realizar seu compromisso de contribuir para a construção de uma sociedade melhor”.
Luis Felipe Miguel é um dos professores mais reputados e produtivos da ciência política brasileira na atualidade. Mas talvez seu principal crédito seja o transbordamento do Lattes e das torres da academia. Pesquisador também nas imbricações entre política e jornalismo, o doutor bota sua cara nas redes sociais com frequência, publica artigos em jornais e sites noticiosos e faz em favor do vulgo o “lé” da literatura com o “cré” das ruas. No “metier”, é louvável o que poderia ser elementar, mas infelizmente não é. Essa vocação e o explícito posicionamento “à gauche” motivaram-no a oferecer o curso de interpretação das rupturas institucionais que vivemos e seguimos vivendo no país, sob a luz da teoria política e perpassando pelo noticiário recente.
Mas carregar a bandeira da narrativa anti-hegemônica é ser “gauche na vida”, e o pesquisador foi empurrado ao centro da arena da política real pela coalizão que serviu ao golpe: a centro-direita partidária, os veículos de imprensa convencionais e a burocracia “mezzo” weberiana, “mezzo” kafkaniana, leia-se particularmente, promotores, juízes e poderosos pardos afins. O que era para ser ordinário virou atrevimento, e a sala de aula foi para baixo dos holofotes. O futuro do professor pode encontrar óbices formais de agora em diante, além de pedras avulsas. Ou seja, ele é a síntese da universidade pública brasileira sob o atual governo encolhido e subserviente ao mercado.
Essa percepção criou uma corrente de solidariedade em torno do personagem e da universidade federal: posicionaram-se em apoio à disciplina do golpe associações de professores, de pesquisadores, de pós-graduandos e de servidores. Destaque-se aqui trecho da nota da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), “estarrecida diante da atitude do ministro da educação em acionar os órgãos de controle para analisar a legalidade de uma disciplina (…) o que comprova a tese básica do curso”.
Desde o surgimento do assunto na imprensa, a UnB, por sua assessoria de comunicação, expressou-se pela manutenção do curso e em defesa “da liberdade de expressão e opinião, valores fundamentais para as universidades, que são espaços, por excelência, para o debate de ideias”. Já o Ipol, em nota, além de apoiar seu integrante que agora sofre ameaça de censura, ressalta que, “enquanto instituição de ensino e pesquisa, preza (por) sua independência e não possui compromisso com nenhuma ideologia ou partido político”.
Também em solidariedade a Miguel, a própria presidente eleita Dilma Rousseff postou em sua conta no Facebook que “os atos do pseudoministro são uma terrível agressão à autonomia universitária, à cultura acadêmica, à livre circulação de ideias e à própria democracia”. Ela lembrou ainda que “impedir que se chame os fatos e acontecimentos pelo nome é reação típica dos regimes de exceção… os maiores inimigos da cultura e da educação.”
O que mobiliza tantos acadêmicos e entidades é a tentativa de censura contra a liberdade de cátedra, garantida no Artigo 207 da Constituição Federal. A vontade soberana do eleitor é revertida dentro do Congresso. A própria Carta Magna passa por um processo de revisão em seu espectro de garantia de direitos sociais. O Exército foi chamado para ir às ruas cuidar da “segurança pública” em um arriscado lance de marketing eleitoreiro. E a autonomia na universidade pública está na mira.
Ficam aqui os quase inexpressivos reconhecimento à coragem e congratulações em forma de apoio a Luis Felipe Miguel e sua decisão de remar contra o discurso caudaloso da coalizão golpista. Já a Mendonça restará reservado o papel histórico de destaque entre os mentores parlamentares do golpe e articulador dos encontros semanais, na casa do deputado Heráclito Fortes, em Brasília, quando esses colegas de oposição, inconformados com a derrota de 2014, estudaram, planejaram, tramaram o impeachment e arregimentaram seu patrocínio financeiro e intelectual.
Política
João Gualberto Jr.
Jornalista, economista e cientista político.