Contagem
Por Flávio de Castro
Desde o ensino médio se dizia descrente, mas foi durante a faculdade de Geografia que inventou a expressão “ateu relapso”, que usava como um supertrunfo engraçadinho quando era indagado sobre o tema. “É que às vezes esqueço que sou ateu e penso em deus”.
Na faculdade particular em que trabalhava desconfiava que havia um conluio para contratar funcionários neopentecostais, que sempre sorriam e nunca se atrasavam ou chegavam de ressaca. Gostava também de postar trocadilhos na rede social para denunciar as bancadas da Bala, do Boi e, sobretudo, da Bíblia.
“Até 2050, os crentes elegem um presidente! Juro pela Nossa Senhora da Estatística!”
Se dizia materialista dialético nas madrugadas do Tudão, mas quase rezou escondido na final da Libertadores e olhou para o céu quando o juiz apitou o fim da partida. Fugia de todos os enterros, batizados e casamentos que conseguia. Todavia, sabia distinguir uma igreja gótica de uma românica, além de saber o que significava retábulo e turíbulo. Quando queria fazer moral (cristã) com alguma musa (cristã) da madrugada, papagaiava logo que o Cântico dos Cânticos era “o primeiro poema lírico da humanidade” e já emendava: “Beija-me com os beijos de tua boca; porque melhor é o teu amor do que o vinho”.
Às vezes a cristã caia no gracejo da alusão mal-intencionada e acabava pecando gostoso por todos os lábios. E o ‘ateu relapso’ gostava mesmo era do Balacobaco da Sabedoria que o caminho do excesso apontava no Google Hell do seu coração: álcool, putaria, pecado, churrasco, droga, futebol, pornografia, tabaco, pimenta, fetiche, porrada, sapato de salto, Tinder e torresmo.
Também não acreditava em médicos ou advogados quando dirigia seu carro sem gasolina pelas bocas da zona sul, acompanhado de amigas garçonetes dispostas a torrar os 10% em sacanagem e beijos sem saliva naqueles hotéis de curta estadia na beira da rodovia. Ficava duas ou três noites sem dormir, noves fora as dívidas, distimia e hipertensão.
“Meu corpo foi feito pela Nasa! E tudo que o dinheiro pode pagar é barato!”
E logo esticava um raio Paris-Dakar daqueles em cima de um livro do Nietzsche que nunca leu. Foi vivendo assim, de quitinete em quitinete, de pino em pino, de relação em relação, de pizza em pizza, de rivotril em rivotril… até que se viu tomando soro no hospital da Unimed às três da manhã, pois sua língua ameaçou enrolar e uma espuma branca saiu de sua boca.
“Se Deus existisse, ele seria a enfermeira que me atendeu.”
Uma tarde estava nas Baianas, sozinho como sempre, bebendo cerveja, de rebordosa, e procurando sexo no Whatsapp. Sentiu que estava com chulé, lembrou que tinha entrado no cheque especial e que o carro estava sem estepe – a tal da súbita consciência que acompanha os verdadeiros bêbados. Ainda assim entrou em seu automóvel e ligou para aquele colega tilelê do trampo para pedir o telefone daquela benzedeira de Contagem. Afinal de contas, ele sabia cantar todos os Afro-sambas, né?
Ele dizia que as músicas de autoria do Douglas Germano eram as “melhores do Metá Metá, né?” Ele vivia postando o link do disco lindo que a Serena Assumpção gravou antes de morrer, né? Afinal de contas, ele sabia que Deus estava morto mesmo e queria era “só ver de qual é”. Bêbado, desorientado, acelerando na BR-040, às 18h de um sábado, e entrando abandonadamente na contramão de uma rua do Jardim Nacional, onde apagou o baseado e conferiu o endereço: sim, era ali mesmo.
Teve vergonha do seu odor de álcool, chulé e maconha. Teve vergonha dos dois enormes buracos negros em seus olhos. Mas a senhora corcunda que o recebeu pareceu não se importar.
Logo reparou que a cambona até que era gostosa e que havia um garrafão de cachaça no canto do altar – “bom sinal”, pensou. Ainda sentiu seu fedor se misturar ao incenso, teve vontade de vomitar e segurou uma gargalhada na hora em que a dona da casa começou a incorporar a entidade de uma escrava. E naquela noite o ateu relapso chorou, se ajoelhou, leu uma reza escolhida ao acaso numa cesta de livros mediúnicos, abraçou a Vovó Cambinda de forma desastrosa e quase pediu um trago do seu cachimbo. Algo tinha acontecido, pois ele deixou vinte de seus trintas reais como retribuição pela benção recebida e também como forma de evitar as glórias mundanas que este valor pode comprar.
Dirigiu por quase uma hora com um sorriso no rosto. Estava leve. Lembrou que a palavra culpa em alemão significa ‘dívida’, ou seja, um valor que ele devia a si mesmo e que seria impossível pagar. Passou batido dos bares e bocas, desistiu de mandar mensagem assanhada para a ex. Simplesmente chegou em casa, tomou um banho, bateu uma punheta e se deitou. Estava leve. Talvez tenha até rezado, pois logo adormeceu como uma criança e roncou mais alto que Xangô naquela madrugada.
Conto-reportagem
Flávio de Castro
Poeta, professor de literatura e funcionário público de si mesmo.