Completo, classudo, inovador e intenso
Por Rafael Mendonça
A música proporciona momentos especiais. No amor, conquista, derrota ou decepção, todo grande momento normalmente é marcado pela música. Invariavelmente ela toma posse dessas coisas e automaticamente se vincula ao acontecido.
Entre quinta e sábado ( de 1 a 3/6) da semana passada, presenciei quatro eventos musicais que mexeram comigo como disse acima. De nenhum dos quatro saí imune. Dos quatro carregarei algum tipo de cicatriz.
Foram diferentes experiências sonoras. Uma audição em estúdio, um show numa casa que tenho carinho, um streaming de internet e um show em uma casa gigante. Tudo recheado de música de alta qualidade. Vamos ao acontecidos que depois volto à reflexão.
Na quinta, o músico Rafael Martini me convidou para uma audição de seu mais recente disco, “Suíte Onírica”, no estúdio Frangono Bafo. A coisa é que, por ser em estúdio, com caixas de estúdio, na sala do estúdio, tudo isso transforma o negócio numa verdadeira imersão. Um mergulho em águas profundas do seu ouvido. E olha, fez uma diferença danada. O disco em si me remeteu a todas aqueles lados B dos álbuns do Tom Jobim. Uma obra orquestral com uma mistura muito complexa de elementos. E é uma mistura de um bocado de coisas que trazem verdades. O Rafael consegue mandar a sabedoria em forma de música. Aquilo impressiona e ele solta um som de quem mostra os caninos logo de cara.
A obra do Rafael sintetiza o que de melhor a música brasileira produziu nos últimos tempos e transforma isso em uma obra realmente onírica, uma experiência que transforma a música em sentimento. Um som completo.
E transtornado sai de lá e me dirigi até a Autêntica para ver o show do Gui Amabis. Já conhecia a obra bem e já tinha visto um show do Gui em formato mais “intimista”. Fui cheio de expectativas, pois imagina um trem mais, digamos, forte. Mas não, o que o Gui entrega é de uma classe ímpar. Com uma banda de craques do momento (Dustan Gallas, Richard Ribeiro, Samuel Fraga e Alberto Continentino), nos mostra a candura de suas composições e as sutilezas delas. Eu que esperava intensidade fui tomado pela classe. Eu que queria caos, fui surrado pela singeleza das canções. Um som classudo.
Aí pulamos para o sábado, e eram umas 16h quando vi que teria uma transmissão ao vivo de um show do Aphex Twin direto da Inglaterra. Já estava 2×1 para o Real Madrid, e desencanei do jogo. Cai de cabeça na apresentação do cara. Nunca a máxima “um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar” fez tanto sentido. É música eletrônica, mas daquelas que se tocassem em qualquer “boate da moda” espantaria os presentes para o bar. É música para quem realmente gosta de música. Complexa, intrincada e de deixar as orelhas em pé. Como era transmissão de internet, o sentimento de “mundo novo” era ampliado por mil. E não bastava a música ser uma coisa alucinante, o ambiente e a iluminação te levavam para outro lugar. E olha que estamos falando de um lance de transmissão via internet. Em 2003, 2004 mais ou menos, tive a felicidade de ver uma apresentação dele em São Paulo. De certa forma bem parecida. Um espetáculo de luz e som sem a sua presença no palco. E talvez por já ter visto ao vivo tenha entendido bem o que estava acontecendo naquela noite em Londres. Um som inovador.
Pois bem, nesse mesmo sábado à noite fui pela primeira vez assistir a um show da Maria Bethânia. A lenda, o mito e tal. E ela é tudo isso mesmo. Foi no atual ‘KM de Vantagens Hall’ e, para início de conversa, o som estava bom. E também o esquema lugar, com mesas que, por incrível que pareça, funcionam. É impossível não lembrar da frase do Lennon adequada para lá: “Vocês que estão aí nas mesas, chacoalhem suas joias”. Mas tudo correu bem e o nível de devoção que Bethânia exerce faz com que milhares de pessoas presentes se calem como se fosse uma missa. Impossível não achar curioso que, nas mesas, a hora com mais celulares levantados foi quando ela cantou ‘É o amor’.
Teve uma hora que ela chegou na lateral do palco, onde um povo fica no limite de não ver o show da arquibancada. Chegou no cantinho. Olhou pro povo e cantou alguma coisa que falava de saudade que não passa e a arquibancada quase veio abaixo. Era no primeiro terço do show e ali chorei pela primeira vez.
É total e completamente uma super star. Em todos os sentidos. Nos trejeitos, no lidar com seu público (já disse aqui que ele come na mão dela?) e com seu show. Muito bem amarrado, muito bem desenhado. É curioso também que ela faz igual aos Ramones, uma música encavalada na outra. Se contasse 1,2,3,4 seria idêntico.
A banda é um caso à parte. Fica em um meio termo entre o pasteurizado e o completamente foda. É um trem meio esquisito. Um trem muito competente.
Em cima do palco, Maria domina. Ela é uma fortaleza e até na parte “política” do show, quando cantou maravilhosamente bem Cálice e Índio, ela dominou a plateia e parecia que regia os gritos de Fora Temer e as vaias. Tem dó, é impressionante.
E para a vida, depois disso tudo, levo uma vontade tremenda de soar completo como Rafael Martini, classudo como o Gui Amabis, inovador como o Aphex Twin e intenso como a Maria Bethânia. Acredito ser essa uma boa meta na vida.
Rafael Martini nas plataformas virtuais.http://www.deezer.com/album/41569631http://itunes.apple.com/us/album/id1234447168https://open.spotify.com/album/5LTEwgaqoACOEOxAmZlCHF
Gui Amabis: https://www.facebook.com/guiamabis/
Cultura e outras coisas
Rafael Mendonça
Jornalista, editor do site O Beltrano, editor da extinta revista ‘Graffiti 76% quadrinhos’, editor do Baderna Notícias e cuidador da própria vida.