Como reverter 20 meses de obscurantismos?


Por João Gualberto Jr.

Ilustração de Binho Barreto

Os brasileiros que se dizem contra a proposta de reforma da Previdência estão entre 71% (Datafolha de maio) e 85% (Vox Populi de novembro).

70% da população discorda da privatização das estatais.

Pesquisa CNI/Ibope, publicada no último dia 20, mostrou que 74% avaliam o governo Temer como ruim ou péssimo. A maneira como o vice-presidente eleito governa é reprovada por 88%. O mesmo levantamento revelou que 59% consideram a atual gestão pior do que a anterior, de Dilma Rousseff.

Já segundo o Datafolha, cujos dados mais recentes são de 3 de dezembro, 71% dos brasileiros rejeitam a administração federal. E são 62% os que disseram preferir o governo Dilma ao de Temer, opinião que era a de 40% há um ano.

A reforma trabalhista, já aprovada e em vigor, também desperta animosidade entre os brasileiros. Os contrários a ela compreendiam entre 58% (Ipsos de maio) e 81% (Vox Populi de novembro). Essa desconfiança não é gratuita. “Surpreendendo o mercado e o governo”, as demissões superaram as contratações em 12.292 vagas em novembro, o primeiro mês com a nova legislação em vigor. Esse dado negativo do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) quebrou uma sequência de sete resultados mensais positivos.

Novembro é mês dos mais aquecidos no mercado de trabalho em razão da preparação para as festas de fim de ano, e a leitura é a de que o déficit na ocupação dos postos seja resultado da flexibilização das relações trabalhistas propiciada pela reforma. Mas não era para ter sido o contrário? As regras menos rígidas não reduziriam os custos e incentivariam as contratações? A reforma não foi amparada pelo discurso de aumento na geração de empregos formais (ainda que com menos salvaguardas para o trabalhador)? Começamos bem!

Que o governo Temer se assenta em mentiras, isso não é novidade. É ele todo uma grande farsa. Que é uma administração urdida para dar errado, ainda que desse certo, também. Que em curto tempo iria se esgotar, que expiraria rápido, idem. O caráter de urgência na tomada de decisões e no movimento para tramitar suas pautas sempre denunciou essa consciência de que seria relativamente curto o tempo para conseguir viabilizar as vilanias.

E importante: quem embarcou tinha consciência também de que se tratava de um Titanic. Ou deveria ter. Embarcar no governo Temer significou dar um passo firme em direção ao autoextermínio político. Seus integrantes estão mais é tratando da própria aposentadoria, sabe-se lá por que meios. Ou deveriam estar. Bem sintomático, aliás, trabalhar por garantir o próprio pirão em detrimento da farinha pouca de todo mundo.

Quem embarcou sem completar pelo menos três décadas de vida pública e sonha destino diferente de pijamas e pantufas que se firme. Como os dados desfiados acima demonstram, dará um certo trabalho convencer o vulgo de que trabalharam pelo bem do Brasil, para “colocar o país nos rumos”, o que exigiu medidas amargas. Tucanos e demais aves bicudas: o senso comum ensina que o cultivo é facultativo, mas a colheita, não. Então, chupem a manga que lhes cair nas mãos.

Eram estas as certezas, portanto, o que os dados das pesquisas de opinião ratificam. Este governo, filho do golpe, foi gestado para se meter em frentes das mais impopulares. Dispunha de tempo curto para tocar reformas e sobreviver, minimamente amparado por algum patrocínio midiático ainda comprometido e com coragem para confrontar a audiência cada vez mais “caída na real” e pela opinião pública antipetista que sobrasse para avalizar sua agenda, apesar dos zilhares de indícios de autointeresse.

As dúvidas eram: de quanto tempo exatamente o grupo dispunha para “devolver o país para os trilhos” e o que era possível fazer nesse período. Desde abril de 2016, quando o impeachment de Dilma passou na Câmara naquela majestosa sessão do dia 17, completou-se 20 meses. E deu pra fazer muita coisa em parceria com o Parlamento de mais baixo nível de todos os tempos e com as bênçãos da pusilanimidade do Judiciário. Em um exame de memória: reforma trabalhista precedida de terceirização irrestrita, emenda do teto dos gastos públicos, estancamento institucional da sangria imposta pela Lava Jato, reforma do ensino médio, revisão de regras para demarcação de terras indígenas, cortes severos nos investimentos dos mais diversos programas sociais, definhamento da política de valorização do salário mínimo, perdão (com o nome gourmet de renegociação) de dívidas de grandes devedores, incluindo o agronegócio e igrejas, privatização de bacias de exploração do petróleo com renúncia fiscal bilionária (muito maior, por exemplo, do que toda a perda com corrupção apurada pela força-tarefa da Lava Jato). De lambuja, duas salvações ao cabeça, denunciado por corrupção no exercício. Caro leitor, você pode contribuir com alguma travessura não lembrada nessa lista.

Quanto tudo isso custou e custará ao Brasil? Bilhões de reais em liberações, a cada tramitação, para comprar votos na Câmara e no Senado. Bilhões de reais em débitos de que a Receita abdica e de impostos que são deixados de cobrar. Em benefício da atividade econômica e da geração de emprego? Esperemos sentados.

Os valores de caixa, de orçamento, até que podem ser calculados com algum esforço, mas e os desdobramentos econômicos e sociais dessas medidas, quem pode estimar? São 20 meses operados como 20 anos. Uma geração impactada por uma empreitada movida pela força da grana, por uma camarilha de autoridades representando, através do prisma dos próprios interesses, os interesses de uma seleta parcela da sociedade.

A pergunta segue no ar: como esse governo sem voto, dono dos piores índices de rejeição da história, conseguiu, sem a legitimidade do apoio popular, aprovar e implementar uma série de políticas notoriamente prejudiciais ao povo? E como esse povo, que demonstra pelo menos desconfiar desse prejuízo de que é vítima, não reage? Para lembrar: arena política não se resume à cabine eleitoral.

Previdência

Deu tempo de fazer muita coisa grave, mas não dá mais. A demonstração da alma farsesca desse governo sem voto é tudo o que envolve a reestruturação do sistema previdenciário. Primeiramente, era tratada e vendida como a reforma das reformas, como a única solução para a solvência das contas do setor público no curto e no médio prazos.

Não há mais tempo para uma “maldade” desse tamanho porque em 2018 tem eleições gerais e o Congresso só funciona até junho, e em regime meia-boca. A memória é curta, mas nem tanto. Ter salvado Temer por duas vezes em 2017 e, para isso, sem constrangimentos, receber em liberação de emendas, já representou risco demasiado às excelências. Exigirá ousadia demais aprovar o aumento da idade para se aposentar, com obrigatoriedade de um período mínimo de contribuição e a chance nula de receber o benefício integralmente. Como a reforma está constituída em Proposta de Emenda à Constituição (PEC), exige tramitação especial, sessões de discussão e quórum e aprovação qualificados. Ou seja, demora mais, e é um risco enorme para um parlamentar embarcar nessa canoa tão impopular em ano eleitoral.

A mexida no sistema em análise é um arremedo da proposta inicial do governo, que enfrentou e enfrenta a oposição do serviço público e dos militares, as castas mais bem arregimentadas do país, a burocracia weberiana que acumulou tanto poder nas últimas décadas que, a depender do tipo de queda de braço, goza de ascendência sobre a categoria política. Além do que, não há consenso sobre o tão falado déficit na Previdência Social. A CPI especial que estudou o tema no Senado concluiu que ele não existe, segundo relatório apresentado no fim de outubro.

O governo, estrategicamente, considera somente as contribuições de empregados e empregadores para atestar que trabalha com déficit de R$ 180 bilhões (estimados para 2017) para arcar com Previdência, seguridade à saúde e assistência, conforme determinado pela Constituição. Acontece que a própria Carta de 1988, em seu Artigo 195, estabelece que as fontes de financiamento do sistema são, além das contribuições, a Cofins, a CSLL, o imposto sobre importações, imposto sobre loterias e outros. A considerar essa cesta, sobra um trocado anual de algumas centenas de milhões de reais, de acordo com estudos paralelos.

O princípio mentiroso e o discurso catastrófico que o acompanha são o mote dessa reforma em questão como de qualquer outra frente governistas. A se basear na famigerada Ponte para o Futuro, da Fiesp, o anteprojeto do governo em curso e a promissória assinada para a construção política do golpe, a lógica é a seguinte: a ideia é, reformando a Previdência, inviabilizá-la enquanto sistema público de aposentadoria e, assim, “privatizá-lo”. Pensando como contribuinte/trabalhador, se não consigo projetar um benefício satisfatório para décadas futuras, para quando parar de trabalhar e contribuir, passo a desconsiderar o sistema público e, desde já, migro para um programa de banco privado.

Toda privatização tem duas vantagens para os agentes de mercado: uma empresa estatal é adquirida por uma privada ou um consórcio já atuante nesse negócio; assim, essas companhias têm a primeira vantagem de explorar o segmento no lugar do governo, fornecendo produtos e/ou serviços para a carteira de clientes já pronta. E usufruem ainda da segunda, a de não terem mais o governo como concorrente. Assim, a se basear no braço mercantil do golpe, é de se deduzir qual seja o interesse verdadeiro na reforma da Previdência Social: ocupá-la.

Nesse caso, haveria ainda uma terceira vantagem para o mercado rentista, que seria a garantia, no tempo, de recurso disponível para a execução de serviços da dívida pública, ou pagamento de juros, hoje em torno de 45% do orçamento bruto da União.

Apesar do impasse sobre a existência ou a lenda em torno do déficit do sistema, é inegável que ele cresce no tempo e exerce pressão. A reforma original visava à ampliação gradual do bolo de recursos oriundos de contribuições e a desaceleração da massa de despesas com benefícios. Em suma, a proposta era facilitar a entrada e dificultar a saída. A reforma da Previdência é o outro lado da moeda da Emenda 95, que põe teto nas despesas públicas. Esta foi aprovada, enquanto aquela subiu no telhado. Uma vez que não há distinção entre despesas no texto da EC 95, como ficarão em duas décadas (período para revisão da emenda) os investimentos em políticas públicas sociais considerando a permanente tendência de crescimento de demanda por recursos do sistema previdenciário? Referendo, Lula? Ora!

Três conclusões e uma aposta

Conclusão 1. Assistimos nos últimos dois anos à mais forte reação liberal da história recente do Brasil. Os agentes de dentro e de fora das instituições fecharam questão em torno de um projeto conservador, firmado em valores conservadores e táticas de violência heterodoxa e cujo objetivo é a preservação da estrutura social do país.

Conclusão 2. Um projeto desse feitio, tocado em 20 meses, jamais, mas jamais mesmo, teria viabilidade eleitoral. Como somos um país eminentemente de população pobre, uma agenda liberal explícita e transparente não tem chance nas urnas por aqui. Nossa desigualdade é tão abissal e absurda que qualquer sopro de projeto de desenvolvimento socioeconômico sustentável passa necessariamente pelo protagonismo do Estado, por meio de políticas públicas. Há quem discorde, ou por ignorar o quadro ou por se negar a financiar a redução da desigualdade, sentado no topo da pirâmide.

Conclusão 3. Reverter os frutos desses 20 meses será muito difícil porque, se tanto desembolsou para se fazer, pelo menos esforço equivalente terá que se desembolsar para se desfazer. Com que caixa? Além disso, todas as medidas têm patrocínio dos donos do poder de facto. Como enfrentar tais interesses? Apenas com uma onda popular muito coesa e poderosa. Se nem as lideranças das esquerdas se entendem, aí fica improvável mesmo. Mas referendo, Lula? É preciso mais firmeza.

Suspeita. Repito: quem fez parte desse governo, sejam personagens ou siglas, terá que dar nó em pingo d’água para se (re)eleger, pelas razões já expostas. Será uma tarefa de marketing para ilusionistas escamotear a cumplicidade no que anda sendo feito em detrimento aos setores mais frágeis da sociedade.

O que o povo sofrido quer em 2018? Papaizinho! Getulismo, aqui vamos nós outra vez. Se não tiver o Lula, você sabe em que papaizinho de fala firme será depositada a confiança do povão, não sabe? Freud explica!

Pois bem, golpe institucional é mesmo uma caixa de Pandora.

Política

João Gualberto Jr.

Jornalista, economista e cientista político.