Alvorada lá no morro
Por Flávio de Castro
João, Matheus, Pedro e Daniel subiram a Rua Caraça com seus nomes bíblicos para comprar maconha no pé do morro. Antes mesmo da primeira aula, logo depois da alvorada, reuniram-se na esquina do colégio e juntaram os trocados – 23 reais (Daniel tinha 50 reais escondidos na carteira, mas preferiu não falar pra ninguém), o suficiente para 4 dolas, ou seja, porções minúsculas de uma diamba seca, suja e cheia de galhos. A caminho da biqueira, fingiam-se confiantes e habituados ao trâmite, ainda que estivessem completamente tensos, ansiosos e desconfiados:
– Tá rolano! Quantas dola, playboy?
Tuim tinha 15 anos, um escorpião tatuado no pescoço e cantava um proibidão para impressionar os estudantes da zona sul.
– Aqui é o crime, Zim. Alemão da Sacramento nóis mata.
Não, não era e não matava ninguém. Ainda. Tuim era lerdo demais, dava troco errado, deixava as petecas cairem no chão e estava tão ansioso quanto os quatro gansos que se aproximavam, os quatro braços, ou melhor, os quatro curiós, que era como a firma chamava os viciados. Mas Tuim, cujo apelido veio da onomatopeia que fazia toda vez que dava um pega, já era frente na Boca da Viela com sua camisa oficial do Palmeiras, lupa Oakley Holbrook e o radio transmissor na mão, ordenando de forma patética que os moleque passassem à visão da rua debaixo. No antebraço, um diamante tatuado e a sigla O.T.A. em letras estilizadas. Tuim tinha a mesma idade de Pedro e Matheus, também era cruzeirense e gostava de MC Brizola. Mas as semelhanças paravam aí. Em duas horas o meninões bem criados do colégio estariam chegando laricados no apartamento vazio do pai de João, onde destruiriam pacotes de biscoito recheado e copos de leite achocolatado enquanto emulavam de forma patética o dialeto original de Tuim: “Xia, djow, colé? É o crime, braço, de rocha!”
Curiosamente, nos celulares dos quatro jovens brancos, que sempre usavam fone em apenas um dos ouvidos, tocava o som de um mesmo funk, Tropa do DJ Swat, que mandava seu hit o “Visão do Crime”: “Nóis é bandido de verdade / é hoje que tu vai vê”, música preferida de Tuim.
Paloma disse que havia acabado de chegar de Porto Alegre, mas no entanto sabia muito bem como indicar para o seu cliente qual o melhor caminho pra chegar na boca da viela. Era seu terceiro programa naquela noite, e seus outros clientes não queriam dar raio com ela. Por sorte, Alberto era cocainômano desde os 16 anos, fazia Comunicação numa faculdade particular e precisava de três pinos de trinta reais pra saber se seria ativo, passivo ou impotente naquela noite. Paloma estendeu a nota de cem pra Tuim, que lhe entregou três capsulas de algo levemente parecido com cocaína e que lhes renderiam uma ressaca de três dias, fora a assadura na glande, a dor no perínio e a culpa cristã de Alberto que, antes de subir a Afonso Pena naquela noite, disse que estava “mascando as muié gata do espetinho perto da facul, fraga?” A boneca gaúcha, “em curta temporada por BH”, esticou duas taturanas brancas, estilo Paris-Dakar, pegou no pau mole do universitário e disse: “ Relaxa gaaato, que a gente vai gozaaar gostooooso”.
Lorim, após muita chantagem emocional, arrancou algum dinheiro de sua mãe, que insistia para que ele se internasse pela quarta vez, mas que agora fosse por um período de nove meses. Em troca da promessa, a mulher cedeu uma onça ao filho. Chegando na biqueira, o zumbi estendeu a nota de cinquenta para Tuim e pediu duas kriptonitas que evaporariam quase que instantanemente no mocó do rapaz ruivo. O frente da boca da viela gostava de judiar de curió noiado, demorando pra entregar a droga e devolvendo o dinheiro trocado em uma cédula de 10, duas de 5, quatro de 2 e uma moeda de 1:
– Fica com com um real de crédito na casa, braço!
Em duas horas não haveria mais troco e Lorim deixaria seu Mizunno Wave Zest com Tuim em troca de 3 minúsculas pedras de crack que o fariam procurar câmeras de vídeo ocultas em seu quarto e ter a certeza de ouvir a vizinhança dizendo o seu nome completo para polícia que esperava para invadir sua casa: “Anderson Freitas Araújo,.Anderson Freitas Araújo…“ Isso se não estivesse escondido debaixo da sua cama, com uma chave de fenda na mão.
Na alvorada, Lorim subiria novamente a ladeira calçando as havaianas da mãe, com os dedos encardidos e a esperança vã de fazer catira numa camiseta velha da Billabong, além de cobrar o real que ainda tinha de crédito. Paloma passaria de carro por ele com “seu amigo taxista”, depois de extorquir 400 reais e um celular (sem o chip) de Alberto durante a sua segunda crise de paranoia, quando a “gaúcha” ameaçou dar um escândalo no motel em que estavam, conluiada com a gerente truqueira e o motorista nóia que se fazia passar por segurança.
Na alvorada, Tuim estaria com uma camisa oficial do Chelsea, calçando seu Mizzuno usado e olhando com orgulho o Samsung Galaxie J5 que trocou com Paloma por cinco pinos de trinta. O frente da Boca da Viela estaria tão feliz que até fortaleceria o coitado do Lorim, aceitando a camiseta em troca da última brita do sacolé. Duas horas depois, porém, Tuim estaria preso, após ser covardemente caguetado por um alemão da Sacramento. Perderia a camisa, os tênnis, os óculos e o celular, fora os 470 reais que deveria atravessar para o Marquim, gerente da Boca da Viela. Ao entregar seus pertences para o Sargento Lopes (conluiado com o Cabo Jonas), sorriu sem sorrir, como se fosse um cangaceiro que ostentava ouro e seda no sertão pernambucano, como se cada dia fosse, de fato, o último de sua vida. Mas ele sabia que era “de menor” e confiava que em breve estaria saindo do Casarão para, finalmente, assinar seu primeiro 121 e se consagrar de vez no morro, pois sairia do Juatuba sem entregar nenhum irmão da O.T.A. e ficaria na moral, fortalecido pelos parça do movimento. Afinal de contas, a caguetagem é uma atitude imperdoável, abjeta e nefasta. E desde o tempo de Judas vem condenando vermes dedo-duros a rastejarem no esgoto enquanto esperam pelo castigo inevitável. E é exatamente por isso que todos os nomes são fictícios e qualquer semelhança desta crônica com a realidade é mera coincidência, pois aqui na redação do O Beltrano ninguém nasceu ontem e “o mais bobo acende cigarro no relâmpago”.
Na humilde, sempre.
– Tá rolano!
Conto-reportagem
Flávio de Castro
Poeta, professor de literatura e funcionário público de si mesmo.